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MONTEVIDÉU  – Enrique Vila-Matas – Companhia das Letras – Tradução: Júlio Pimentel Pinto 

Existem escritores que contam sempre a mesma estória, com pequenas variações, e nem por isso deixam de ser geniais… Enrique Vila-Matas é um desses escritores… a mesma estória que repete é a do escritor em crise com um bloqueio criativo, que está sempre em trânsito, participando de congressos de literature em diferentes cidades… Neste livro, o narrador é um escritor catalão que vai para Paris inspirado nos escritores norte-americanos dos anos 20 e acaba se transformando em traficante de drogas, antes de se virar um escritor famoso… agora ele passa por um bloqueio criativo, ou síndrome de Rimbaud (*)… 

Na tentativa de romper este bloqueio criativo ele retorna a Paris, depois seguindo por Cascais, Montevidéu e novamente Paris (além das reminiscências de passagens por Bogotá, Nova Iorque e St. Gallen), onde  algumas vezes nos quartos vizinhos dos hotéis onde se hospeda, ocorrem eventos significativos na trama do livro… podemos interpreter estes quartos contíguos como metáforas do lado esquerdo do cérebro, o local onde estariam as novas idéias para uma obra, que o escritor não consegue acessar…

O evento central envolvendo quartos vizinhos, ocorre em Montevidéu (**), quando o escritor se hospeda no mesmo quarto do Hotel Cervantes onde se passa o conto “A Porta Condenada” de Julio Cortázar. Para tal é necessário que o leitor tenha lido antes tanto este conto, como também “Estória com Migalas” do mesmo autor… Eis aqui uma exigência que fazem este e outros autores que intercalam ensaios literários na ficção: para ter uma compreensão mais completa da obra é necessário o conhecimento de uma série de outras obras…

No caso desta, ajuda muito o leitor ter assistido os filmes de Truffaut estrelados por Jean-Pierre Léaud, bem como “Spider – Desafie sua Mente” de David Cronemberg e lido “Baterbly, o Escrivão” de Herman Melville, entre outros…

Quem já leu outras obras deste autor não irá se decepcionar, inclusive porquê neste livro Vila-Matas insere pitadas de literatura fantástica, elemento que não me recordo de ter visto em suas obras anteriores… 

Quem nunca leu, poderá descobrir um dos melhores nomes da literatura atual…

(*) Arthur Rimbaud abandonou a literatura com 20 anos de idade para se tornar mercados de armas na África

(**) Por sinal a definição da capital uruguaia de Vila-Matas é exemplar:

“Montevidéu era uma cidade, mas também um estado de ânimo, uma forma de viver em paz fora do convulsionado centro do mundo (…)”

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ERZA POUND POESIA – Editora Cobalto – Introdução, organização e notas: Augusto de Campos 

Finalmente foi publicada em Pindorama uma coletânea com as poesias de Erza Pound… se pensarmos que os poemas longos mais importantes do modernismo (*) são “Homage to Sextus Propertius”, “Hugh Selwyn Mauberley” de Pound e “The Waste Land” e “The Hollow Man” de T.S. Eliot, é de se espantar que desde 1981 tenham sido publicadas aqui duas coletâneas de Eliot (**) e somente no final de 2024 tenha saído uma coletânea de Pound.

Antes do texto, gostaria de comentar a edição pelas imagens: temos fotografias de Pound realizadas por Arnald Genthe, Walter Mori, Wesley Duke Lee, Décio Pignatari (entre outros), fac-símiles das cartas que ele enviou ao grupo Noigandres e até uma vortografia (***) de Erza Pound realizada por Alvim Cobum em1917.

Quanto ao texto, temos um bom apanhado da poesia de Erza Pound, traduzidos por Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Mário Faustino e José Lino Grunewald, dos longos poemas retromencionados a poemas curtos como o famoso “Numa Estação do Metrô” (****) e principalmente 17 Cantares (fragmentos de Os Cantos), completados por ensaios, tanto como o texto introdutório escrito por Augusto de Campos, quanto os textos que seu irmão Haroldo escreveu, um sobre a visita ao apartamento de Erza Pound em Veneza, outro logo após a morte de mesmo, quando compara a obra do poeta ao Templo Malatestiano edificado em Rimini por Leon Battista Alberti.

Pound utiliza uma linguagem associativa baseada no ideograma chinês ao invés do discursso poético linear, uma cosmovisão épica sem um fio narrativo. Tal qual o ideograma chinês no qual a posição dos signos determina o significado, a justaposição de temas gera a informação, temos por exemplo, no terceiro canto os temas de Inês de Castro, El Cid e a cidade de Veneza… o que teria a ver uma coisa com a outra? Na minha visão, se considerarmos que Inês de Castro foi coroada depois de morta e que o cadáver de El Cid foi amarrado em um cavalo para afugentar os mouros (sugerindo que ele não morrera), podemos inferir daí que Veneza seria uma cidade cadáver… (será que foi por isso que Erza Pound está enterrado em San Michele in Isola, aquela ilha-cemitério veneziana?)

Não é uma literatura fácil, para compreender o poeta, temos que entender também o Erza Pound critico e tradutor, seja nos Personae, poemas em que outros poetas ditam sua linguagem através de Pound, seja nos Os Cantos.

Aliás, sobre Os Cantos, segue uma declaração do próprio autor:

“Não haverá nenhum plano, nenhuma crônica de acontecimentos, nenhuma lógica do discurso, apenas dois temas, a descida ao Hades de Homero, uma Metamorfose de Ovídio, e misturadas a eles, figuras históricas medievais e modernas.” 

Mas o que tornou Erza Pound o mais importante nome da literatura do século XX foi além de sua obra como poeta, crítico e tradutor, a sua contribuição para a publicação de outros artistas como T.S. Eliot, James Joyce, Yeats, Marianne Moore, Cummings, William Carlos Williams, etc. Hemingway, também ajudado por ele, disse que Pound destinava um quinto do seu tempo para a própria obra e o restante para promover as obras dos seus amigos…

Finalmente, não posso deixar de lado a sua lamentável adesão ao fascismo, o que o levou a prisão como traidor por ter transmitido programas de radio apoiando Mussolini… Porém enquanto Erza Pound foi colocado em uma jaula para animais (gorilla cage) em Pisa e depois transferido para uma prisão em solo norte americano, membros do exército nazista e cientistas do Reich foram trabalhar livremente nos Estados Unidos, ou seja, muitas vezes o artista é perseguido, enquanto que cientistas e militares que cometeram os mesmos erros são perdoados…

Mas enfim, esta coletânea é espetacular… entretanto espero que publiquem aqui uma biografia dele, bem como livros que expliquem detalhadamente sua obra.

(*) Somente agora, está se verificando a importância das mulheres na poesia modernista, com a descoberta de Mina Loy, Hope Mirrlees e Nancy Cunard, que escreveram três poemas longos magníficos: “Songs to Joannes”, “Paris:A Poem” e “Parallax”, respecivamente, publicados aqui no livro TRÊS POETAS MODERNÍSSIMAS – Editora 34 – Organização, tradução, ensaios e notas de Álvaro A. Antunes.

(**) T. S. ELIOT POESIA – Editora Nova Fronteira – Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira – 1981/ T.S. ELIOT POEMAS – Companhia das Letras – Organização, tradução e posfácio de Caetano W. Galindo – 2018.

(***) Fotografia abstratizande obtida através de três espelhos aclopados.

(****) IN A STATION OF THE METRO

The apparition          of these faces          in the crowd    :

Petals                           on a wet, black        bough.

NUMA ESTAÇÃO DE METRÔ

A visão              destas faces        dentre a turba     :

Pétalas              num ramo úmido         escuro.

(Tradução: Augusto de Campos)

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ABC DA LITERATURA – Erza Pound – Editora Cultrix – Tradução: Augusto de Campos e José Paulo Paes

Este é um tratado básico para aqueles que buscam uma real abertura de horizontes mentais através da literatura… nele Pound classifica as três formas de poesia: melopéia, fanopéia e logopéia (*) e os  escritores como: inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas e lançadores de modas; nele Pound discorre sobre Ovídio, Homero,  a poesia medieval (Seafarer), provençal (Guillaume de Poictiers, Bertran de Born, Bernard de Ventadourd, Arnault Daniel, Guido Cavalcanti), oriental (Li T`ai Po), Geofrey Chaucer (que ele afirma se melhor do que Shakespeare),  John Donne, Robert Herrick, e até sobre o romance (**)

Porém a mais importante lição do livro é a noção de que a “grande literatura é simplemente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível”

Além do dito retromencionado neste livro, Pound exprime duas de suas mais famosas sentenças: “os artistas são as antenas da raça” seguida por “uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio”…  Só por estas duas frases podemos perceber uma das causas do declínio de Pindorama, nação que negligenciou Gregório de Matos, Sousândrade,  Mário Faustino, Arnaldo Xavier, entre outros…

O único aspecto negativo referente a tradução é que há vários textos em inglês  antigo que não estão traduzidos… aqui fica a pegunta: alguém que consegue ler estes trechos no original, necessita ler o resto do livro traduzido? Porém como forma de compensação, os tradutores acrescentam um apêndice com uma mini-antologia do paideuma (***) poundiano, com trechos das obras dos autores citados no primeiro parágrafo e também de François Villon, Robert Browning, Edward Fitzgerald, Tristan Corbière e Arthur Rimbaud, entre outros.

(*) melopéia = poesia orientada pelo som e ritmo das palavras, fanopéia = poesia orientada pela imagem ou imaginação visual, poesia orientada pelo intelecto.

(**) “ Se vocês quiserem estudar o romance, leiam o que houver de melhor do gênero, tudo o que eu sei a respeito de romances, eu aprendi lendo:

Tom Jones, de Fielding.

Tristram Shandy e The Sentimental Journey, de Sterne (…)

Os romances de Jane Austen e Trollope”

(***) Paideuma: a ordenação do conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com ítens obsoletos.

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O LIVRO DAS ILUSÕES – Paul Auster – Companhia das Letras – tradução: Beth Vieira

Este ano quando perdemos Paul Auster, eu me dei conta que ainda não havia lido nada dele, uma de minhas muitas lacunas em minha formação literária… para remediar, li este livro… 

A obra conta uma estória  narrada por  David Zimmer, um professor universitário que desnorteado pela perda da família em um acidente aéreo, descobre ao zapear na TV, um astro do cinema mudo chamado Hector Mann que desaparecera misteriosamente de Holywood em1929… a partir daí o livro narra a busca para descobrir o destino do ator (que também era o director dos seus próprios filmes) como também para resgatar a obra perdida deste gênio do cinema.

Não é a toa que Paul Auster também tenha sido roteirista pois o filme transpira cinema, as descrições de Zimmer ao assistir as películas de Hector Mann são tão bem construídas que dão ao leitor a impressão de estar assistindo ao filme.

Além de bem escrito “O Livro das Ilusões” obriga-nos também a pensar sobre a memória das obras de arte, bem como sobre a questão da produção de uma obra obra de arte: a quem será que o artista pretende mostrar a sua obra? Ao outro? Ou será, a si mesmo?

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ATOS HUMANOS – Han Kang – Editora Todavia – Tradução Ji Yun Kim

No meu modesto conhecimento de literatura não li muitos vencedores do prêmio Nobel, somente Thomas Mann, Luigi Pirandello, T.S. Eliot, William Faulker, Winston Churchill, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Pablo Neruda, Gabriel Garcia Márquez, Octavio Paz, Kasuo Ishiguro e Annie Ernaux … é muito pouco, por isso é sempre recomendável aumentar a lista, mesmo que este prêmio não signifique muita coisa, afinal Jorge Luis Borges, James Joyce, Guimarães Rosa, Marcel Proust, Erza Pound, Haroldo de Campos, Fernando Pessoa, Antonio Tabucchi, Georges Perec , Hida Hilst, W. G. Sebald ou Thomas Pynchon não ganharam o prêmio Nobel.

Neste intuito resolvi ler “Atos Humanos” escrito pela sul-coreana Han Kang, a mais recente vencedora deste prêmio, embora não com esta obra…

Utilizando várias formas narrativas, o livro mostra diversos personagens vivendo em tempos distintos, porém cujas vidas se entrelaçam em torno de um personagem central, o estudante Dongho, vítima do massacre de Gwangiu, uma insurreição ocorrida entre 18 a 27 de Maio de 1980, contra o ditador Chun Doo-hwan que havia dado um golpe de estado em 12 de Dezembro de 1979.

Expondo facetas da fragilidade humana e da ausência de valor da vida em um ambiente repressivo, o livro exprime uma mensagem de resiliência ao mal, que a primeira vista parece ser exclusiva do pensamento oriental, mas que também é encontrada nas passagens dos evangelhos de Mateus (5,38) e Lucas (6,29), quando Jesus fala em oferecer a outra face (há inclusive um capítulo em que uma personagem descreve separadamente os sete tapas na cara que recebeu em um interrogatório).

Confesso que não é um livro que me extasiou, porém na época atual com tantas mazelas, uma obra que exalte de forma poética a solidariedade, a entrega descompromissada, a dignidade humana,mesmo não sendo genial,  sempre merece ser lida.

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EL LIBRO DE TODOS LOS AMORES – Agustín Fernández Mallo – Editora Seix Barral

Mescla de romance e ensaio o livro conta a estória de um professor de latim uruguaio que passa um ano sabático em Veneza, enquanto que sua namorada, uma escritora (também uruguaia), que está escrevendo um tratado sobre o amor, retorna a cidade para reencontrá-lo. A narração ocorre algum momento do presente século, quando a sociedade caminha para a beira de um colapso. 

Intercalado com a narrativa das andanças do casal, segue em paralelo, o texto que a escritora está escrevendo: uma série de pequenos diálogos e um inventário  das mais diversas formas de amor.

Li este livro no começo do ano, agora releio-o pinçando um ou outro pedaço, em um processo de lenta digestão literária… vejam só que interessante é esta reflexão, que traduzi assim:

“Ela lhe disse:

        O amor é uma fantasia.

Ele lhe disse:

       Mas é uma fantasia exata.

A tecnologia, em todas sua variantes mais especialmente desde a aparição da eletrônica e mais tarde das redes sociais, tem experimentado um crescimento exponencial. Entretanto, a percepção que nós humanos temos de nosso entorno não cresce exponencialmente, porém acontece sempre em um mesmo ritmo, linearmente. Tal falta de conciliação entre ambos fenômenos indica, em primeiro lugar, que já faz muitos anos que o avanço tecnológico escapa a nossa apreensão do entorno – cada vez menos imediato e mais vasto – , e em segundo lugar que chegará um dia no qual o crescimento exponencial da tecnologia será tão ascendente que quase alcançará a linha vertical, quando então nem sequer poderemos detetar o que nos rodeia. Não haverá então percepção humana que possa assistir a tal mudança; o entorno tecnológico fugirá de nós, sem mais nem menos. Mas isto também indica que o amor – coisa que no ser humano aparece súbita e instantâneamente , e que portanto cresce de modo exponencial – será a única coisa que em sua fuga poderá acompanhar a tecnologia. Será então o amor a solitária testemunha que dará conta dos acontecimentos.  Não sera a “Internet das coisas” o que nos salvará da solidão individual, mas o amor das coisas. Pode ser inclusive que pelas leis elementais do contágio viral o amor se faça tecnologia, e vice-versa, a tecnologia adquira um halo de pulsão amorosa até agora somente possível nos ossos da coxas das fadas e nos solitários olhos dos cíclopes (Amor exponencial).”

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LOS INGRÁVIDOS – Valeria Luiselli – Editora Sextopiso

Recentemente foi publicada uma lista dos críticos do New York Times com os vinte melhores livros do século XXI e para a minha surpresa não constava nenhum livro de Valeria Luiselli… na minha opinião “O Arquivo das Crianças Perdidas” deveria estar incluído nesta lista… senão este, pelo menos algum outro desta autora… como este por exemplo…

Em minha recente visita a Espanha, comprei este exemplar em um livraria em Córdoba… ao chegar ao hotel descobri que já havia lido este livro em Pindorama, só que com outro nome… no caso, o livro foi publicado aqui como “Rostos na Multidão” (*) pela editora Alfaguara (tradução de Maria Alzira Brum Lemos). Mas mesmo assim, resolvi relê-lo, desta vez no idioma original… 

O livro é narrado em três vozes narrativas que dialogam entre si, todas em primeira pessoa: uma quando a narradora estava trabalhando em uma editora em Nova Iorque e morava em apartamento minúsculo, outra em uma época posterior, quando a mesma, recém casada e com dois filhos (um dos quais recém nascido), começa a se ambientar em uma casa na Cidade do México. A Terceira voz narrativa é uma pseudo-autobiografia do poeta mexicano Gilberto Owen (escrita, na verdade, pela narradora), na qual ele interage com Frederico Garcia Lorca e o poeta Joshua Zvorsky, (**).  Na confluência destes discurssos narrativos, observamos a mão de uma grande autora em início de carreira, na qual temas como solidão, abandono, aparições fantasmagóricas em viagens no tempo e espaço, história da literatura (e seus possíveis engôdos), maternidade, etc., se entrelaçam, formando um conjunto conciso.  Não sei se na primeira leitura eu estava destatento aos detalhes, ou se é só na releitura que começei a perceber as camadas ocultas na obra… mas valeu a pena eu ter me enganado naquela livraria em Córdoba e ter comprador este livro.

(*) Em inglês o livro também foi publicado com este título: “Faces in the Crowd” baseado em um poema de Erza Pound muitas vezes citado ao longo da obra, “In a Station of the Metro”

“The apparition of these faces in the crowd:

    Petals on a wet, black bough.”

(“ A aparição desses rostos na multidão:

 Pétalas em um galho molhado, preto.”)

Vale citar que “ingrávidos” em espanhol não designa falta de gravidez e sim falta de gravidade… em português seria como “Os Sem Peso”.

(**) Na verdade se trata do poeta Louis Zufofsky. Embora Owen, Garcia Lorca e Zufolsky tenham morado em Nova Iorque na mesma época, não existe registro de que eles tenham convivido, como sugere a pseudo-autobiografia.

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A VIDA E AS OPINIÕES DO CAVALHEIRO TRISTRAM SHANDY – Laurence Sterne – Tradução: José Paulo Paes – Penguin Companhia

Um fato pelo qual sempre serei curioso é como este livro publicado em nove volumes entre 1759 e 1767 tenha tido tanto sucesso de público em sua época. Afinal  o livro não tem muita estória e esta, avança e volta em uma série de digressões desfocadas.

Desde a concepção do protagonista, Tristram, quando antes do ato sexual, a mãe pergunta se seu pai havia dado corda no relógio e a falta de concentração derivada desta interrupção, segundo o pai, principia o mau destino do filho, até o erro no nome no registro do batismo (de Trismegistro pasou a ser Tristram), que também segundo o seu pai, iria trazer o mau agouro, são passados 4 volumes, ou seja, trata-se de um relato autobiográfico no qual o protagonista é batizado quase a metade do livro. 

Depois a estória prossegue a passos mancos na tentativa de aproximação entre o tio de protagonista , Tolby, e a viúva Wadman,  passando depois a uma viagem de Tristram já adulto, ao continente europeu  entremeada por outra viagem do mesmo em sua juventude acompanhado pelo tio e pelo pai.

Então por quê o sucesso de Sterne, citado por Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e que infuenciou James Joyce, Virginia Woolf entre outros?

Porquê neste caso, o que importa não é o significado e sim o significante, ou seja não é a estória, mas sim a forma com que a mesma é contada… 

Tristram Shandy é revolucionário: a dedicatória e prefácio estão na metade do livro, a estória muitas vezes é paralisada  e retomada páginas e páginas após muitas e muitas digressões… no livro IV o capítulo 24 é suprimido (a página 359 vai para 370), pois o capítulo ficou tão bom que o autor o retirou pois achou que iria destoar da obra… há uma página em branco para que o leitor desenhe a viúva Waidman, pois a personagem era tão bonita que Sterne ao invés de descrevê-la, prefere que o leitor desenhe seu próprio retrato… 

Após ler esta exuberante obra, percebi a dívida dos diretores do Cinema Marginal com o autor irlandês… é irrelevante especular se Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Andrea Tonacci, Ozualdo Candeias, Elyseu Visconti Cavalleiro, etc, leram ou não Sterne… o importante á descobrir que  muito antes da realização destes filmes já havia sido extruturada uma linguagem não linear, repleta de digressões e monólogos interiores… se nossos brilhantes cineastas realizaram o “Cinema de Invenção” (na definição do crítico Jairo Ferreira), Laurence Sterne seguindo os passos de Miguel de Cervantes, séculos antes inaugurou a escrita da invenção…

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NARRATIVAS INQUIETAS – Joseph Conrad – Editora Perspectiva – Tradução: Alcebiades Diniz Miguel

Este livro apresenta duas faces menos conhecidas de Conrad: contista e dramaturgo.

Vamos começar pela última, Joseph Conrad dramaturgo… na verdade o escritor nunca escreveu diretamente para o teatro… o que fez foram adaptações de seus contos para as artes cênicas… neste volume temos dois exemplos: “Anne Gargalhada” e “Mais Um Dia”, a última uma transcrição do conto “Amanhã” presente na mesma edição… é muito interessante ler o conto – que é uma visão alternativa da estória bíblica do filho pródigo – e sua adapatação para o teatro depois.

Com relação ao Joseph Conrad contista, temos que observar que ao contrário de contistas famosos com Poe, Borges ou Cortázar que fazem contos curtos  com um climax  que vai se amenizando, os contos de Conrad são longos a tensões vão se desenvolvendo ao longo da narrativa.

Uma das faces de Conrad que mais aprecio é a sua visão geopolítica, … Neste aspecto “Il Conde: Uma Narrativa Patética”, “Um Anarquista: Um Conto de Desespero”, e “Karain – Reminiscências” são exemplares… o primeiro profetizando o surgimento da máfia, o segundo mostrando o trabalho escravo na Guiana Francesa e os movimentos anarquistas franceses, e o terceiro explorando as contradições entre a cultura do colonizador e loucura dos povos primivos, e por falar em loucura, esta permeia outros dois contos: “Os Idiotas” e “Amanhã”…

Porém na minha humilde opinião “O Retorno” é o ponto máximo do livro… aqui nada de mares, rios e florestas tropicais conradianas, aqui o conto se passa em uma residência londrina e o enredo é uma simples briga de casal… nada de ação… aqui o crescimento da tensão narrativa é estruturado por uma sucessão de silêncios e ruídos, de claros e escuros, de rostos mutiplicados por espelhos, enfim, cinema na forma de literatura… e tanto assim que foi adaptado para a grande arte no filme Gabrielle de Patrice Chéreau… Agora, nesta questão de rostos mutiplicados por espelhos, fico pensando… será que este aspecto do conto não influenciou aquele pequeno pedaço do capítulo 12 do Ulisses de James Joyce, onde o enlutado jovem senhor Dignam para ao observer um cartaz de boxe em uma vitrine onde “dos espelhos dois jovens senhores Dignam de luto observavam silenciosamente embasbacados…”? Ou voltando a falar de cinema: será que este truque de imagens refletidas em espelhos presente neste conto de Conrad, não influenciou a cena final do filme “A Dama de Shangai” de Orson Welles?  

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FREYA DAS SETE ILHAS – Joseph Conrad – Grua Livros – Tradução: Eduardo Marks de Marques

Aprofundando a metáfora de Cortázar refente ao boxe e à literatura em prosa, os contos seriam como lutas de boxe amador, somente três assaltos, onde os lutadores tem que golpear o máximo que puderem em pouco tempo; as novelas seriam lutas de oito assaltos; enquanto que os romances seriam lutas de 12 assaltos, ou mesmo aquelas de 15 assaltos que eram travadas nos anos 70 e que foram suprimidas (para preservar a integridade física dos lutadores).

A novela por ser um gênero intermediário, costuma ser posta de lado pela crítica, apesar de existirem grandes obras do gênero como “Metamorfose” de Franz Kafka, “Os Mortos” de James Joyce, “O Alienista” de Machado de Assis,“Baterbly” e “Benito Cereno” de Herman Mellville ou “Noturno Indiano” de Antonio Tabucchi.

Joseph Conrad, que dominava tanto os romances como os contos, também se sai bem em novelas, como “O Duelo” e “Freya das Sete Ilhas”, embora estas duas (as únicas que eu li) não atinjam a grandeza de seu mais famoso romance, nem possam ser elencadas como os exemplos de gênero literário retromencionados.

Tal qual seus famosos romances “Lord Jim” ou “Coração das Trevas”, “Freya das Sete Ilhas” é narrada por um contador de estórias, que se recorda de um velho dinamarquês chamado Nielsen que se estabelece em uma pequena ilha perto de Bangka na Indonésia, onde passa a ser chamado de Nelson e vive em compania de sua filha, Freya, uma linda loura que passava horas tocando um piano que ele havia trazido de Cingapura… Nelson recebe constantemente a visita de um jovem comerciante inglês, Jasper Allen e de um ofical holandês, Heemskirk, ambos interessados em sua filha… Mas é em torno de um outro personagem que a estória se desenvolve… um personagem inanimado… é o barco “Bonito” que pertence a Jasper Allen… Através dele que Conrad desenvolve seu pessimismo fatalista, que sem deixar de lado a geopolítica da época, mergulha nos abismos da maldade humana… 

Embora não seja uma obra essencial como mencionado no penúltimo parágrafo, “Freya das Sete Ilhas” não deixa de ser uma narrativa dos mares tropicais escrita por um autor citado por Francis Ford Coppola ou por T.S. Eliot…

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