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{ Monthly Archives } março 2021

KHADJI-MURÁT – Lev Tolstói – tradução: Boris Schnaiderman – Editora 34 Este romance, a última obra de Tolstói, é a síntese de seu processo criativo… depois de escrever romances extensos como “Guerra e Paz” e “Ana Kariênina”, ele passa aos contos populares e depois às novelas, atingindo o mesmo grau de excelência neste gêneros. Porém no final da vida, ele resolveu voltar a escrever um romance baseado em suas experiências como oficial do exército russo na guerra do Cáucaso (1817-1864), em especial a passagem na qual o guerreiro tchetcheno Khadji-Murat (1796-1852) se entregou ao exército russo. Na época, Tolstói comentou esta história em uma carta ao seu irmão Serguei, depois em 1862 na escola rural que fundou em sua propriedade de Iásnaia Poliana, ele costumava contá-la aos camponeses… por fim, a partir de 1896, passa a escrever um romance, cujos rascunhos possuem 2.166 páginas… até que vai depurando e condensando o texto para chegar a versão final com 159 páginas… O romance está incluso na categotoria designada por Cortázar como construção esférica, definição dada a obras que começam e acabam no mesmo ponto… “Khadji-Murát” inicia e termina com a imagem de um tufo que fora esmagado por uma roda de carroça, mas que se reerguera… uma erva que não se rende a ação destruidora do ser humano… esta imagem (metáfora da luta de povos que se rebelam contra o despotismo e a submissão), lembra ao narrador uma velha história de um guerreiro caucasiano… Na narrativa, através de uma linguagem que antecipa tanto os movimentos de camera quanto a montagem cinematográfica; a ocupação russa no Cáucaso e a resistência dos povos islâmicos, são mostrados sob diferentes pontos de vista (dos povos montanheses, dos soldados, das mulheres que habitavam os quartéis, dos oficiais, etc.). Também são habilmente expostos os aspectos geográficos da região, bem como o contraste cultural entre os povos, acentuado pelos trajes, pela culinária e pelos hábitos cotidianos… Um aspecto que faz com que a leitura deste livro tenha uma forte relação com os dias atuais, é a descrição que Tolstói faz do Czar Nicolau I… vejam como o escritor definiu o tirano em um dos rascunhos preliminares desta obra: “Para que, naquele tempo, um homem que estivesse à testa do povo russo, precisava ter perdido todos os atributos humanos: tinha de ser uma criatura mentirosa, ateia, cruel, ignorante e estúpida, e precisava, não apenas sabê-lo, mas, também, estar convencido de ser o paladino da verdade e da honra e um sábio governante, benfeitor de seu povo” Você, caro leitor, ao examinar os diversos governantes atuais, consegue reconhecer alguma criatura semelhante? Alguém que perdeu todos os atributos humanos?

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FELICIDADE CONJUGAL / A SONATA DE KREUTZER – Lev Tostói – Tradução: Boris Schnaiderman – Editora 34 Apesar de terem sido publicados em épocas distintas, um em 1859, outro em 1891, estes dois livros formam um díptico, ou melhor uma espécie de LP, com o lado A e o lado B da relação entre casais… na verdade não seria bem um LP, e sim um disco compacto simples, com a Sonata ao Luar (Sonata para piano nº 14, Op.27 nº 2) em um lado e a Sonata de Kreutzer (Sonata para violino e piano nº 9, em lá maior, Op. 47) no outro lado… isto porque nas duas obras, a execução destas peças de Beethoven desencadeiam evoluções no enredo, pois para Tosltói “a música é a taquigrafia dos sentimentos”… Embora não estejam entre as grandes obras do escritor russo, a leitura destes livros revela a dictomia tosltoiana, que é o conflito entre seu moralismo exagerado e sua capacidade de expressar os desejos humanos: em cada uma das obras nota-se o predomínio de um aspecto, porém com o outro aspecto embutido dentro, sendo que os dois livros formam algo semelhante ao símbolo do yin/yang (um círculo dividido em duas metades, uma branca e outra preta e dentro de cada metade um círculo na cor oposta): um depoimento feminino e outro masculino, ambos antagônicos embora complementares… na verdade são duas partes do mesmo livro, embora os personagens e circunstâncias não sejam os mesmos…

A MORTE DE IVAN ILITCH – Lev Tolstói – Tradução: Boris Schnaiderman –Editora 34

De todos os livros que reli, este com certeza foi o que mais me surpreendeu… na primeira vez que li, achei esta obra um tanto quanto maçante, uma espécie de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” sem senso de humor… e não entendia porque muitos a consideram como uma das maiores novelas escritas em todos os tempos… muitas vezes uma tradução ruim arruina um livro, caso que ocorre muitas vezes na literatura russa em português, onde muitas vezes o tradutor não traduz direto do russo, mas de outras traducões, principalmente as francesas… mas não foi este o caso… a outra tradução era de Irineu Franco Perpetuo que também era direta do russo… talvez eu não tenha lido com a devida atenção…

Agora relendo, verifiquei que o amargor no qual o magistrado moribundo relembra sua vida, que me aborrecera na primeira leitura, é uma cr a ﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽te  o final do livroeiturao campo) e que serºa critas em todos os tempos…ítica a futilidade burguesa, a mediocridade corporativa da coni-convivência dos funcionários públicos, ao cinismo com que os “saudáveis” tratam os doentes crônicos… Após verificar o desdém pelo qual os médicos pouco explicam a ele a sua real condição, percebe que muitas vezes procedera da mesma forma ao proferir suas sentenças no tribunal… Ivan Ilitch sabe que sua doença é mortal e percebe que o seu apego à vida é no fundo um apego a ideais vazios, sem significado…

Nesta obra Tosltói sintetiza a sua teoria mística, uma espécie de novo cristianismo, criada no final da sua vida, alterando não só o significado (o conteúdo), mas também o significante (a forma), quando cessa de escrever extensos romances, como “Guerra e Paz” ou “Anna Kariênina”, e passa a produzir novelas mais concisas com uma linguagem mais sintética…

Enfim, nesta época de pandemência, quando muitos e muitos Ivanilitixês, Ivanislédsons e Ivanisleides agonizam nesta triste Pindorama e qualquer um de nós pode assumir este trágico papel a qualquer momento, este é um livro duro porém puro; contundente porém transcendente! Leiam!

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APRENDENDO A VIVER – CARTAS A LUCÍLIO – Sêneca – tradução: Lúcia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas – L&PM Editores

Ganhei este livro recentemente de um colega no trabalho… A capa e o título lembram um destes livros de auto-ajuda, porém seu autor é Sêneca, nascido em Córdoba em 4 a.c. e falecido em Roma em 65 d.c. Este andaluz tornou-se uma das pessoas mais influentes do Império Romano: filósofo, dramaturgo, conselheiro do imperador… confesso que eu não conhecia sua obra, só via seu nome citado em um outro texto (como no poema “Ewigkeit” de Jorge Luis Borges) e sabia que ele havia sido preceptor de um tal de Nero…

Este livro é uma coletânea das cartas que ele escreveu ao seu amigo Lucílio (que não sabemos se realmente existiu ou se era um interlocutor imaginário), nas quais Sêneca professa sua filosofia, um misto de estoicismo com epicurismo… Temos cartas sobre os mais variados assuntos: “Da qualidade de vida comparável com sua duração”, “Da futilidade de planejar o futuro”, “Do encontrar a morte com alegria”, “Dos enganos do mundo”, “Do ler e escrever”, etc.

Deixo aqui dois exemplos, o primeiro está na carta Do consolo ao enlutado”:

 “Caso tivesse  perdido um amigo, a maior das perdas, deverias ainda assim ficar feliz porque o tivesse, e não porque o perdeste.”

O segundo exemplo está na carta “Da economia do tempo”:

Podes me indicar alguém que dê valor ao  seu tempo, valorize o seu dia, entenda que se morre diariamente? Nisso, pois, falhamos: pensamos que a morte é coisa do futuro, mas parte dela já é coisa do passado. Qualquer tempo que já passou pertence à morte.

Então, caro Lucílio, procuras fazer o que me escreves: aproveita todas as horas; serás menos dependente do amanhã, se te lançares ao presente. Enquanto adiamos, a vida se vai. Todas as coisas, Lucílio, nos são alheias, só o tempo é nosso.”

Nesta época de pandemia demencial, as frases dele sobre o aproveitar o presente momento soam tremendamente atuais… aliás na idéia de “trata de viver cada dia como se fosse uma vida inteira” está a base de um dos maiores romances do Século XX: “Ulisses” de James Joyce, no qual o autor traça um paralelo entre um dia comum de um cidadão comum com a Odisséia de Homero, como se naquele 16 de Junho de 1094, o corretor de anúncios de jornal Leopold Bloom pudesse vivenciar toda uma epopéia…

Vamos vivenciar uma epopéia a cada dia! Neste mês, que será o mais obscuro da nação brasileira, que a leitura de Sêneca nos ajude a enfrentar estes dias difíceis!

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