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ACONTECEU NAQUELE BAR

Ele poderia ter escolhido outro caminho , mas resolveu passar em frente ao antigo bar que freqüentava na época da faculdade … fazia muito tempo que não voltava… parou o carro , e resolveu andar algumas quadras a pé , só para passar lá e verificar como estava …
O bar continuava o mesmo , as grades que delimitavam o bar ainda eram as mesmas : pedaços de dormentes fincados no piso sustentando correntes … lá dentro também pouca coisa mudara , talvez a cor das paredes fosse outra , mas ainda estavam aquelas mesas e cadeiras metálicas com os logotipos das indústrias de cerveja … esta , por sinal deveria estar morna ( como sempre fora ) mas com pedaços de gelo grudados do lado de fora ( para das a impressão que estava “trincando de gelo” ) … também ainda devia ter X-Trambique ( um delicioso sanduíche a base de pão francês , copa , cebola crua e queijo prato derretido ) ou a tradicional calabresa frita no álcool …
Ele reparou porém que os garçons mudaram , não havia mais o Oscar o garçon principal , um maluco que depois tornou-se escritor , nem o Etivíldio com seu cabelo Jackson Five …
Mas para ele a única coisa diferente mesmo que estava vendo , era a ausência de uma turma de frequëntadores , de cinco pessoas que iam religiosamente lá na hora do almoço discutir os rumos da arquitetura e das artes no brasil : ele mesmo e seus quatro amigos : Sávio Cacciaccinni, Fúlvio Dicaravaggio, Sancho Ruiz Maldini e Hildon Risério ( os dois primeiros pintores, os dois últimos escultores ) …
Começou a lembrar das discussões exaltadas , de como eles pretendiam revolucionar as artes , de como tinha absoluta certeza de que todos eles iriam entrar para a história e que aquele bar seria conhecido como o local em que aqueles gênios freqüentavam , que aquela esquina viraria ponto de afluxo de ônibus de turismo … Porém nada daquilo acontecera , os amigos viraram profissionais liberais ( arquiteto , publicitário ou chefes-de-cozinha ) e ele trabalhava na mediocridade do funcionalismo público …
“ – Onde foi que erramos” era o ele que perguntava a si mesmo estarrecido … resolveu entrar e pedir uma cerveja preta , e ficou pensando , e quanto mais ele pensava mais indignado ficava “- Por que nós nunca fizemos sucesso ? Nós que éramos os Donos da Arte no Brasil , Por que fracassamos ?”
Pediu outra cerveja e naquele intervalo de tempo em que alguém espera o garçon trazer o pedido , ele teve um estalo : se lembrou das teorias de Arthur Schopenhauer e percebeu que na verdade as pessoas são aquilo que elas querem ser … ou seja : aquelas reuniões eram preparatórias para que todos fossem o que são , pessoas comuns vivendo uma vida decente com as suas famílias , o “Homem Comum Enfim” que James Joyce tanto preconizou … então ele percebeu o sentido de tudo aquilo e deu uma enorme gargalhada !!!

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MARACAS & TUBOS DE ENSAIOS

I

Existem pessoas que demonstram tanta alegria de viver que passam a ser polêmicos tanto no ambiente de trabalho quanto nas demais área da vida cotidiana … Márcia Lívia Gonzales era uma delas … Bonita , viajada , inteligente , espirituosa e bem casada , causava inveja em algumas infelizes colegas de trabalho e profunda admiração em outras funcionárias ( principalmente por doar regularmente 20% do seus salário para obras assistenciais ) daquele laboratório de análises clínicas de um renomado hospital curitibano ( cujo nome prefiro não citar ) … o que mais irritava a ala contrária à conduta de nossa protagonista , era a mania que ela tinha de ouvir e dançar ritmos latinos no ambiente de trabalho , chegando ao cúmulo de em alguns exames, desprezar o aparelho homogeineizador e sacudir os tubos de ensaios tal qual maracas ao som de um mambo ( o mais incrível era que os resultados saiam perfeitamente exatos ) … Tal felicidade não poderia ficar impune … um dia uma outra laboratorista querendo sabotá-la , trocou o sangue de uma amostra que seria analisada por Márcia , pelo sangue que retirara de seu cãozinho ( um filhote de labrador ) , na noite anterior …
– Não posso analizar este sangue , ele não é sangue humano !!! Gritou espantada a nossa protagonista …
– Como assim ??? Disse a superior imediata .
– Sei lá , deve ser sangue de algum animal …
– Você está ficando louca !!! Vai ver é a sua mania de ouvir rumbas …
– Você está duvidando de minha palavra ???
– Estou sim , deixem-me ver este sangue …
O que a nossa amiga não sabia , era que suas colegas invejosas trocaram de novo sorrateiramente , o sangue canino pelo sangue do paciente
A superior imediata examinou minusciosamente as amostras e então exclamou :
– Vejam só !!! Este sangue está normal … Acompanhe-me até a sala do chefe do laboratório , precisamos ter uma conversinha !!!

II

Se existe alguém que pode ser chamado de gozador na face da terra , este alguém é Custódio Ronald Rosemberg … Após morar duas décadas no Tibet estudando assuntos esotéricos com um velhinho alemão que pertencera a Ordo Templi Orientis (O.T.O.) , ele voltou a Pindorama para assumir uma herança descomunal e passar o resto da vida passando trotes e – como se diz em sua cidade natal , no nordeste – mangar dos seus semelhantes …
Custódio , que era o maior doador para as obras de modernização daquele hospital , fazia seus exames de rotina e achou graça quando ouviu o diretor daquela instituição contar para o presidente , que o chefe do laboratório aplicara um mês de suspensão em uma funcionária que dissera que o sangue de um paciente não era sangue de ser humano …
– E de quem era o sangue ? Perguntou o presidente …
– Pois justamente – respondeu o diretor – era o sangue dele , do Doutor Custódio .
O nosso protagonista então , percebendo a oportunidade de aplicar um chiste , respirou fundo e disse :
– Tranquem a porta … vou confessar um segredo terrível !!!
Após ter certeza que o quarto estava trancado Custódio prosseguiu ;
– Esta funcionária está certa … eu não sou humano … eu na verdade , sou uma entidade de um outro plano espiritual , um espírito etéreo órfico-primordial… vejam só .
Lembrando-se do mito de Proteu e usando um truque barato de hipnotismo que aprendera no oriente , o nosso amigo induziu o presidente e o diretor a acreditarem que ele se transformara em um tamanduá , um polvo , uma zebra , uma gazela , um beija-flor , um tatu-bola , um bicho preguiça , um tigre , uma tartaruga e uma minhoca até retornar à forma humana …
– Viram ??? Não lhes disse !!! Agora façam o favor de nunca contarem para ninguém o que vocês acabaram de ver e promovam esta funcionária a algum cargo bem alto , senão não doarei mais um mísero centavo para este hospital …

III

O diretor e o presidente jamais entenderam como Márcia “descobrira” que Custódio não era um ser humano de verdade , mas nunca tocaram neste assunto com ela e nem interferiram quando nossa protagonista , em seu primeiro ato de diretora extraordinária , obrigara as antigas colegas a tocarem quinze minutos diários de maracas antes das tarefas cotidianas ( endosmoses , ustulações , hidrólises , solvatacões , etc . ) .

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COM MUITO SABOR

Ao sair da redação da revista “Le Gourmet” na quinta-feira , Dimas Carlos Tibério transmitia um enorme entusiasmo , pois o nosso protagonista tinha a certeza de que aquele seria o primeiro de uma série de artigos que lhe abririam as portas para o seleto círculo da alta gastronomia .
Na terça-feira seguinte ao receber a notícia de que sua matéria fora recusada, Dimas começou a achar que jamais seria mais do que um simples dono de restaurante por quilo , que ficaria condenado para sempre a preparar , salpicão de frango , arroz , feijão , bife-rolé , rondelli de presunto-e-queijo e outras mediocridades …
O artigo em questão se intitulava “A Verdadeira História da Feijoada” , e explicava que a feijoada não surgiu como o prato que os escravos faziam com as sobras da comida da casagrande , uma vez que a matemática não batia , pois cada senhor de engenho tinha em média uns quatrocentos escravos , ou seja , as partes menos nobres do porco que sobravam não eram suficientes para tanta gente . Outro fator que demolia este mito era que o sal era muito caro na época , o que obrigava os escravos a se alimentar básicamente de angu e de laranja . Havia ainda a informação que orelha de porco e outras partes , sempre foram consideradas iguarias em Portugal , inclusive constando em antigas receitas. Tudo isso não é grande novidade , o que causava polêmica mesmo , era a tese que reinvidicava que a carne usada primeiramente não era carne suína , mas carne de roedor . Na opinião de Dimas , a origem da feijoada deu-se durante as navegações , quando os marinheiros famintos incrementavam o sofrível feijão servido com os ratos oriundos dos porões das caravelas. Mais tarde , na terra recém descoberta foram usados os animais disponíveis , principalmente a paca e a capivara . Somente com a chegada da suinocultura nas terras de Pindorama é que o panorama se modificou .
Enquanto preparava a feijoda que seria servida no dia seguinte , o nosso protagonista começou a beber uma bagaçeira artesanal que uma amiga sua , também proprietária de restaurante , trouxera da cidade portuguesa de Barcelos. Quando faltava um quarto para terminar a garrafa Dimas avistou uma enorme ratazana . Ficou olhando para ela em silêncio durante uns quinze minutos enquanto balbuciava palavras inenteligíveis , quando então matou o animalzinho a vassouradas e resolveu preparar a verdadeira receita da Feijoada … Comeu sozinho e adorou … achou que jamais comera algo semelhante …
Ao chegar em casa , tarde da noite , contou sua descoberta para esposa que ficou enojada e proibiu-o de beija-lá , e começou até em falar em divórcio … Dimas percebeu então que era só dar uma aparência de higiene que não teria problema nenhum , afinal se tem gente que come hamburguer de minhoca , porque é que não haveria pessoas dispostas a comer carne de rato… Começou então a criar os animais em laboratório , seguindo todas as recomendações da vigilância sanitária , convenceu a família a experimetar e depois os amigos : todos adoravam o prato , que foi batizado de Feijorat ( pronuncia-se Feijorrét ) . Só faltava servir no restaurante … para isto , Dimas contou com a colaboração de um hábil acessor de imprensa que publicou uma matéria afirmando que do mesmo modo que a dominação americana impôs o hamburguer no Século XX , a ascenção da China como potência dominante iria fazer com que todo mundo copiasse os hábitos alimentares chineses , entre eles o consumo da carne de rato , e que o restaurante do nosso protagonista ( agora rebatizado “O Rei da Feijorat” ) estava na vanguarda ao incorporar esta tendência estrangeira à tradição brasileira, tal qual os modernistas e tropicalistas .
No início somente yuppies e a comunidade chinesa frequentavam o local , mas com o passar do tempo o público foi crescendo , crescendo e crescendo mais ainda , sendo que Dimas passou a ampliar o cardápio com uma versão light ( a Feijohamster ) , com pratos da culinária baiana ( Acararat e Abararat ) e até francesa ( Cassourat ) .
Dizem que ele estuda até a criação de franquias para o ano que vem …

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ALMOÇANDO COM TROGLODITAS

Silvestre Malaquias sabia que não deveria ir àquele almoço com seus companheiros de escritório , mas era aniversário do gerente e não havia maneira de escapar , uma vez que ele mesmo sabia que deveria melhorar sua imagem dentro do ambiente de trabalho , afinal não conversava com ninguém de seu meio profissional , com exeção do pessoal da limpeza e porteiros … não que fosse tímido , pelo contrário , mas simplesmente , não se sentia à vontade no convívio cotidiano em meio aquelas pessoas toscas , com visões de mundo tão tacanhas , que não liam nada , que só iam ao cinema ver as mesmas coisas de sempre , que davam apelidos aos outros baseados em personagens de novelas ou reality-shows , que ( mesmo gastando um bom dinheiro ) se vestiam mal , que reclamavam dele quando ele pedia um prato com curry ( achavam que o tempero indiano fedia ) , que enfim , eram despreparadas para um entendimento pleno da vida.
Mas foi . E não gostou , não gostou da churrascaria chique moderninha ( com piso de granito e uma hosstess emboaba que usava um taileur sofrível ) , não gostou das auxiliares administrativas tomando Amarula achando que estavam abafando , não gostou dos garçons que não paravam de chegar oferecendo as mais variadas coisas , não gostou do encarregado financeiro dizendo com orgulho que só comia carne bem passada , não gostou da secretária-assistente que comeu casquinho-de-siri e depois linqüiça calabresa , não gostou das conversas altamente fúteis ( sobre se uma pessoa que estava em outra mesa da churrascaria era ou não era uma atriz de novela ) , não gostou dos comentários maliciosos e do ar de espertinho da pessoa que proferiu tais comentários , não gostou dos batuques com os talheres ( em ritmo frenético ) , não gostou da brincadeira esperta das pessoas presentes ficarem ligando uns para os outros nos celulares , não gostou da baixa criatividade das pessoas presentes ao escolherem os temas para as músicas de seus celulares , não gostou da funcionária do departamento pessoal que se achava elegante vestindo blusa com estampa de pele de onça & calça preta de fuseau & sapato salto 12 cm ( para provocar o Supervisor de Produção ) … enfim aquela vulgaridade , aquela bestialidade , o agredia …
Mas o pior era a guerra de bolinhas de papel e de palitos de dente em meio aos gritinhos histéricos das funcionárias e as gargalhadas boçais dos funcionários … não aquilo era demais … Silvestre Malaquias então respirou fundo , estalou o dedo três vezes , se levantou calmamente e disse aos berros : – “Chega !!! Chega !!! Eu não agüento mais esta nojeira !!! Eu não agüento !!! Chega !!! Chega !!! De palhaçada já chega !!!” E então , ele puxou a toalha rápidamente derrubando pratos copos e talheres … A churrascaria ficou muda , todos paralisados , silêncio sepulcral …
De repente , um sujeito de meia idade se aproximou do nosso protagonista e trocou algumas palavras em alemão … Silvetre Malaquias se levantou e os dois se retiraram rápidamente do recinto …
Na verdade o sujeito de meia idade era um diretor consagrado do Cinema Alemão , cujo nome não me recordo , mas que tendo observado o ato deseperado de um pobre ser pensante ( em meio aquele festival de atrocidades que costumam ser as comemorações de firma ) percebeu que Silvestre Malaquias seria o ator ideal para seu próximo longa , “Verklärte Nacht” . A película ( baseada no poema de Richard Dehmel , na música de Arnold Schoenberg e filmada no litoral norte de São Paulo , mais precisamente na barra do Una ) foi premiada no festival de Cannes e o nosso amigo recebeu o prêmio de melhor ator …
Mas , naquele fatídico escritório ninguém soube deste fato , porque não passou no Fantástico … nem no Faustão …

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AGOUROS TROPICAIS

Domênico Donaccio prometera várias vezes que iria ensinar Karine Aranjuez a atirar com uma arma de verdade . Na manhã do dia combinado, quando rumaram para uma praia no litoral paulista , ele estava bastante apreensivo , achando que algo iria dar errado , que seria um enorme erro emprestar seu revólver para sua namorada… afinal ela , em virtude de sua descendência espanhola , era bastante ciumenta e temperamental … mas fazer o quê ? promessa é dívida …

Depois de estacionarem , o nosso protagonista sentou-se sobre o chão e observou Karine descarregar o tambor do Smith & Wesson calibre 32 … após minutos de silêncio , um velhinho aparece correndo , aos prantos , com um pássaro ferido na mão .

Ao se aproximar os dois viram que ele trazia um papagaio baleado … A ave olhou para o casal e disse em meio aos últimos suspiros : – “Nevermore” … e então fechou os olhos …

– Vocês mataram o meu papagaio !!! vocês não tem idéia do que fizeram !!! Ele era ensinado !!! Sabia declamar “The Raven” do Allan Poe , de cor e em inglês … eu ganhava a vida mostrando ele aos turistas , agora estou perdido … Vão embora seus filhos-da-mãe , nunca mais voltem aqui !!!

Domênico e Karine não abriram a boca , após meia hora ela disse que achava que era melhor que se separassem pois as últimas palavras do papagaio eram um tremendo mau agouro . Ele concordou silencioso …

O nosso protagonista frustrado , largou o emprego e se tornou funcionário público municipal , mais especificamente virou coveiro .

Devido a natureza do dia-a-dia de sua mais nova profissão ele começou a beber demais . Detalhe : não gostava de cachaça , seu forte era gin : desinfetava o aroma de defunto .

Uma noite , chegou em casa cambaleante , fritou um pedaço de contra-filé e se sentou para comer , mas a bebedeira era tamanha que ele dormiu sobre o bife … sonhou … sonhou que estava naquela mesma praia e que havia um navio que apitava três vezes e então ele jogava a arma no mar , aí uma ave aparecia no céu . Acordou … limpou o rosto e comeu a carne …

No dia deguinte , ligou para o trabalho dizendo que só iria no periodo da tarde . Foi para o litoral . Na praia avistou a embarcação e ouviu os três apitos . Arremessou então o 32 para os reinos de Netuno … À tarde , de volta ao ambiente de trabalho ( cemitério ) , notou um corvo sobre uma lápide … se aproximou , a ave olhou para ele e cantou um samba de Noel Rosa :

“Se existe alma,

Se há outra encarnação

Eu queria que a mulata

Sapateasse em meu caixão” (*)

Domênico descobriu então que o pássaro cantava todo o repertório do ilustre sambista , de “Primeiro Amor” ( Noel Rosa / Ernani Silva ) a “Último Desejo” ( Noel Rosa ) . Percebeu também que poderia dar a ave de presente para o velhinho caiçara , desfazer todo o mal cometido e a seguir se reconciliar com Karine Aranjuez … Batizou o corvo de “Lacerda” e o levou para o pobre pescador .

Deixou aquele emprego hediondo e parou de beber aquela coisa com gosto de perfume . Hoje está casado com Karine … um dia desses ela disse :

– “Meu bem e se em vez de me ensinar a atirar , você me levasse para pescar ???”

– “Tá louca ??? Nem pensar … E se de repente você pescar um revólver enferrujado ???”

– “Mas uma arma nessas condições não funciona.” Ela retrucou.

– “Será ??? E se funcionasse ??? Eu não iria achar de novo outro corvo como o ‘Lacerda’ “.

– “Não se preocupe , mesmo que isso acontecesse e acidentalmete a arma disparasse atingindo o ‘Lacerda’ , desta vez eu acharia outra ave rara : um albatroz que declamasse Baudelaire ou uma arara que cantasse tudo do Ary Barroso .”

– “Então tá bom .”

(*) Fita Amarela ( Noel Rosa )

PS. : Desenho baseado em fotograma do filme “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla .

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AMOR COM CLASSE

I

Naquela época Dalva Valentina se deitava diariamente sobre os lençois azuis de cetim … nua e sutilmente perfumada , ela ouvia sempre o mesmo disco : Ella Fizgerald cantando Cole Porter . Ela lera no famoso Livro da Moderna Magia Celta , escrito por um tal de Jonathan Butler Shaw , que aquilo iria trazer sorte , que assim arranjaria um grande amor …

Um dia , ia atravessando a rua distraída , o tráfego estava engarrafado , com os carros parados … ela achou que daria para atravessar , mas um motoboy apareceu do nada … Por pouco , ela seria mais um número nas terríveis estatísticas de acidentes de trânsito , não fosse um rapaz que segurou firmemente seu braço… Ela se virou e disse : – ” Puxa : Você fez alguma coisa por mim .” Ele , sorrindo timidamente falou : -” Se todas as mulheres do mundo formassem uma montanha você seria o topo .” … e aí se iniciou um diálogo que terminou no bar mais próximo …

– ” Um Manhatan , por favor !!!” – ele pediu ao garçom e virando-se para ela , ofereceu

– ” Manhatan ???”.

Ela disse meio sem jeito :

– “Não , pois este nome é o mesmo de uma música de Rodgers & Hart , e eu gosto é de Cole Porter … um Dry-martini , por favor …”

II

– “Noite e dia , você é o mundo .” … eram as palavras que ele repetia nas semanas seguintes àquele encontro … em uma tarde úmida , comunicou-a que a levaria à Paris , quatro vezes naquele ano : na primavera , no outono , no inverno e no verão … e cumpriu a promessa … depois , numa noite seca , pediu sua mão em casamento …

– “Eu tenho você profundamente em meu coração , tão profundamente que você realmente é uma parte de mim .” … Disse ela ao receber o pedido.

Na festa de casamento , um almoço com boleros tropicais , tudo transcorreu bem entre taças e taças de Dry-martini.

–” Foram servidos tantos , que precisaria de um campo de oliveiras inteiro só para suprir as azeitonas.” comentou um convidado no dia seginte …

Porém , na noite de núpcias , ele achou que iria surpreender com músicas diferentes e anunciou a surpresa : -“Trouxe um CD : Benito de Paula !!!” …

Nosso amigo jamais imaginaria que aquela mulher tão sofisticada , que segurava os talheres à européia ( com o garfo virado para baixo na mão esquerda , e a direita sem largar a faca ) iria responder com termos tão baixos …

III

Dalva Valentina , ficou precisamente uma semana atônita , até que , ao escovar os dentes , teve um estalo : ” A água ao descer pelo ralo no hemisfério Sul percorre o movimento no sentido horário , diferentemente do hemisfério Norte , onde o sentido é o anti-horário. Então as forças elementais giram em sentido inverso , o que quer dizer que , se uma magia vem das regiões boreais , nós das regiões austrais , devemos fazer tudo ao contrário…” Pensou estarrecida diante de um processo intuitivo que lhe revelara alguns segredos do universo .

IV

Hoje , sobre uma colcha feita com retalhos de cetim azul , proveniente de antigos lençóis , a nossa protagonista ouve sucessos de Benito de Paula na esperança de encontrar alguém que na noite de núpcias leve um disco ( de vinil ) de Ella Fitzgerald cantando Cole Porter , nem que seja o do show que ela fez com Duke Ellington ( em Estocolmo no dia 7 de fevereiro de 1966 ) no qual eles cantam somente uma música daquele que foi um dos melhores compositores do século vinte .

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ACONTECEU NUM BAR

Douglas Ramirez era uma pessoa descrente do futuro da humanidade …-“A pizza de frango com catupiry , é um indicativo óbvio de um futuro catastrófico !!!” Era o que dizia enquanto tomava um gole de cerveja no “Sereia Prafrentex” boteco decadente situado no bairro do Planalto Paulista … Douglas tinha convicção do que dizia , pois era professor de história de um cursinho na Paulicéia , e podia observar os modos da juventude : -“Eles são boçais deslumbrados com as possibilidades da tecnologia , mas não são mais tão individualistas como os da geração anterior …” falava misericordiosamente , mas logo atacava : -“Se eu fosse o Presidente da República , proibiria as novelas e obrigaria as emissoras de TV a exibirem atores lendo Oswald de Andrade e Guimarães Rosa , para aumentar o nível intelectual da população …”

Severino Dionísio , o atendente , ouvia pacientemente as lamúrias do freguês de todas as horas enquanto observava as três jovens que entraram no estabelecimento … Pediram uma mesa e uma gelada … Começaram a conversar e como bar era pequeno , Douglas não podia ignorar a conversa estudantil … notou que do trio , uma se destacava : – “A de cabelo castanho claro … muito mais inteligente e mais culta que as outras.”

E foi ela , ela mesmo , que se levantou e veio na direçào dele dizendo : -“Tudo bom ? Fui sua aluna , no ano retrasado … agora estudo história na USP… Li outro dia num jornal que você vai lançar um livro em que prova que a Revolução Constitucionalista de 1932 foi mais importante do que a Segunda Guerra Mundial … É verdade ?”

-“É claro !!! É como no futebol : não é porque a partida vale pela Copa do Mundo que ela é melhor do que um São Paulo X Santos … O que vale é o qualitativo , não o quantitativo … Veja por exemplo , qual o invento mais importante do século vinte ??? O automóvel ??? Não , ele não passa de uma modernização da carroça … A coisa mais importante foi o avião , só ele realizou o sonho de Dédalo , o sonho de voar … Pois bem , seu inventor Santos Dumont , não se matou por causa do bombardeio de Londres ou devido a bomba atômica em Hiroshima … ele suicidou-se , no Guarujá , depois de observar o uso de sua invenção para fins bélicos em 1932 …”

– “Puxa , é mesmo …”

– “Vamos ao meu apartamento , é aqui pertinho .. Lá irei te mostrar outras evidências de minha teoria…”

– “Com prazer !!! Espere um pouco , vou despedir-me de minhas amigas.”

Voltou à mesa …

Severino Dionísio olhou para Douglas Ramirez com desdém … não era letrado , mas sabia que tudo aquilo era uma enorme picaretagem …

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ACONTECEU NO SUPER-MERCADO

Aquele carrinho de supermercado repleto de mercadorias era , definitivamente , a gota d’água … Charles de Larbeau , não suportava mais sua mulher Jeanne … bastava ela começar a falar demais que ele imediatamente começava a tamborilar sobre o encosto da cadeira , sinal para que ela calasse a boca … se ela demorava na banca de jornal folheando revistas de jardinagem , bastava um estalo de dedos dele para que ela baixasse a cabeça e colocasse a publicação no lugar … enfim , todo este comportamento de Charles não era gratuito : há vinte anos atrás ela perdera a única filha do casal nas ruas de Paris … entrou em uma boutique no Faubourg Saint-Honoré e esqueceu a criança do lado de fora … quando saiu com as compras , nada da filhinha … A partir daí o nosso protagonista passou a desdenhar de sua cara metade … mas , o que mais o irritava era fazer o supermercado com ela … criticava o seu consumismo …

Naquela tarde ficara no estacionamento ouvindo a “Sinfonia Inacabada” de Schubert , dentro do carrão importado e ao entrar no supermercado viu o tal carrinho …

– Quanta porcaria !!! O que é isto ??? O que é esta laranjona ???

– É pomelo , a fruta de que é feito aquele suco que você tanto gostou no café da manhã do nosso hotel em Bariloche , lembra ???

Ele não disse nada …ficou por um momento olhando para o teto , observando as luminárias fluorescentes corretamente dispostas … depois num gesto de fúria , lançou o pomelo pelos ares e acertou um chute conhecido no meio futebolístico por “sem-pulo” …

O fruto acertou o rosto de uma linda garota ( que usava um vestido lilás com detalhes em verde-turquesa ) , ela para não cair no chão apoiou-se em uma prateleira derrubando as mercadorias pelo chão … O alvoroço fez com que os seguranças chegassem ao local e imobilizassem Charles com golpes de jiu-jitsu …

A garota do vestido lilás vendo seu agressor naquele estado , percebeu que em seu dedo mindinho havia um anel com uma esmeralda em forma de escaravelho , e então gritou :

– Soltem este homem !!! Ele é meu pai !!!

– Charlote , é você ??? Disse Jeanne …

– Sim mamãe , sou eu !!! Nossa , como vocês estão diferentes … só reconheci papai por causa do anel …

Charles , depois de se refazer do entrevero , olhou para Jeanne e citando seu xará Baudelaire disse :

– Ah ! meu caro anjo ! Quanto lhe sou grato pela minha habilidade !

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A VERDADEIRA ESTÓRIA DE UM ROUPEIRO CHAMADO TONINHO

Toninho Roupeiro sabia que aquela tarde seria a justificação de sua existência : a equipe em que ele trabalhava ( na ocupação designada pela segunda parte de seu apelido ) , o Escrete Esportivo Emboaba ( E.E.E. ) disputatava em Tóquio a tradicional final do mundial interclubes contra o Sportivo Palermocalcio , um clube italiano formado por imigrantes argentinos … Ele tinha certeza da vitória , porém as obcessões do técnico Alejandro Gutman , punham em dúvida do sucesso derradeiro , pois desconfiva daquele uruguaio (*) , que dizia constantemente : -“Yo soy un hombre místico … Yo tiengo visiones espirituales de cosas que losotros no miram …” . E não era por menos , pois Alejandro usava um fez ( chapéu turco ) e ficava falando sozinho no período que antecede os confrontos , nas escadarias dos vestiários … Uma parte da imprensa achava que ele era um engôdo , a outra formada por jornalistas polêmicos , acreditava que ele era um verdadeiro gênio , que abandonara todos os esquemas táticos atuais e ressussitara a formação em diagonal , inventanda por Flávio Costa …

O primeiro tempo foi terrível , a equipe italiana jogou na retranca e explorando oportunisticamente os contra-ataques e obrigou o goleiro do E.E.E. , Peres Donizete a fazer defesas incríveis , sendo que uma delas foi considerada pela crítica esportiva especializada como mais sensacional que o célebre lance em que o arqueiro inglês Gordon Banks pegou uma cabeçada de Pelé , no México em 1970 … Antes de entrar no vestiário para o intervalo , Alejandro Gutman cochichou com Toninho Roupeiro : -” Yo tiengo que hacer una bússula mental …”

Aos sete minutos do segundo tempo o árbitro da peleja : Ramón de Sandoval y Rojas ( chamado de Jamón Sandoval devido sua predileção por presunto cru ) , espanhol nascido em Argamansilla de Calatrava , marca um pênalti duvidoso em cima do italiano Benito Bertoni … goleiro num canto e a bola no outro : no canto da trave !!! Pois é … não entrou …

A partir daí o técnico do Escrete Esportivo Emboaba , começou a dizer aos berros todo o dicionário de palavrões da língua espanhola ; e como o árbitro , cansado se ouvir os vitupérios do técnico emboabino, não ignorava o que ouvia , explusou-o do gramado …

O uruguaio passou a assistir o jogo da arquibancada , transmitindo as informações para Toninho através de um telefone celular … O que ele não imaginava , foi que o roupeiro desconsiderou totalmente as suas orientações e passou a agir por conta própria … -“Chega das palhaçadas deste cara , eu mesmo é que vou dar um jeito na partida …”

Aos trinta e sete do segundo tempo , o técnico interino , chama Ribamar ( o canhotinha de ouro ) e disse o seguinte : – “Olha , não passe a bola pra ninguém , viu ??? Vá driblando , driblando , até entrar com bola e tudo.”

… 39 min …40 min … 41 min …42 min … 43 min … 44 min !!! 45 min … descontos : Sportivo Palermocalcio ZERO X Escrete Esportivo Emboaba UM !!! (**)

Ao dar a entrevista coletiva como técnico Campeão Mundial Interclubes , Alejandro Gutman disse : – “Fueram las visiones , fueram las visiones …” mas ele sabia que não houvera visão nenhuma e que o mérito não era dele …

Toninho Roupeiro jamais revelou seu segredo , mas o uruguaio teve que abandonar a profissão (***) pois não suportava os sorrisinhos superiores do roupeiro emboabino …

(*) Parente distante do treinador húngaro Bela Gutman , que trabalhou em uma equipe paulista na década de cinqüenta .

(**) Um obscuro jornalista paraguaio Gardênio Hernández Garibay , publicou um artigo ( no jornal “Periódico del Sport” de San Salvador de Jujuy ) , em que compara o gol de Ribamar com o final da letra do tango “El Sueño del Pibe” composto em 1943 por Juan Puey e Reinaldo Yiso :

“Faltando un minuto están cero a cero;

tomo la pelota, sereno en su acción,

gambeteando a todos se enfrentó al arquero

y con fuerte tiro quebró el marcador.”

(***) Dizem que Alejandro se tornou alfaiate em Taquarembó , porém não há registros de sua passagem pela cidade nos arquivos da prefeitura local .

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O BROTINHO SIOUX DE ARARAQUARA

Se perguntarmos a algum jovem de Araraquara ( cidade do interior paulista ) sobre uma loira que costumava vestir-se de índia norte-americana , provavelmente ele não saberá informar nada, porém se indagarmos às pessoas que viveram lá na década de setenta ouviremos as mais variadas estórias , embora pouquíssimos saibam que Beatriz Tavares adotava o estilo “Brotinho Sioux” devido sua identificação com o filme Blue Soldier ( em Pindorama chama-se “Quando É Preciso Ser Homem” ), em que a personagem interpretada por Candice Bergen é uma deusa platinada que foi raptada pelos peles-vermelhas e passou a defender os valores dos índios … ela tenta retornar à civilização mas um novo ataque dos índios a deixa a sós com o único sobrevivente da sua guarda de escolta … aí começa o romance que termina tragicamente , com o soldado sendo preso por deserção olhando para aquela mulher em prantos em meio a aldeia devastada : o filme , embora se baseasse em um fato histórico ( O Massacre de Sand Creek ) era uma metáfora a guerra do Vietnã , aliás a TV nunca exibiu o filme na íntegra , pois as cenas do exercito americano massacrando a aldeia são muito contundentes…

Pois bem , no dia posterior em que assistira a fita na Sessão Coruja , Beatriz teve um estalo e resolveu “virar” Sioux ( embora dias depois enjoasse desta tribo e passasse a se designar Comanche , Delvare ou Navajo, jamais Apache , tribo que odiava , embora não soubesse dizer o porquê ).

Sete meses após aquela data em que começara a trajar roupas indígenas , a nossa amiga , vagueando pela cidade , notou um garoto estranho , com cerca de cinco anos que vestia o uniforme da cavalaria americana e conduzia um pastor alemão – “Meu Deus , ele acha que é o cabo Rusty e que aquele pobre cão é o Rin-tin-tin !!!” Pensou a nossa protagonista …

Voltou para casa apressada , mas ao olhar para os freqüentadores do bar da esquina , deparou com homem usando um boné de pele de castor que bebia cerveja com um outro vestido de índio : – “Já sei , Daniel Boone e seu amigo Mingo !!! Será que todos nesta cidade resolveram me imitar ???” raciocinou atônita …

No dia seguinte mais personagens da televisão : um menino vestido de Willie Robson ( Perdidos no Espaço ) , uma loira oxigenada de odalisca ( Jeanny É Um Gênio ) , um emboaba se achando o Dr. Spock ( Jornada nas Estrelas ) , um bóia-fria com um macacão vermelho com o nome escrito sobre o lado esquerdo do peito : Kobawski ( Vinte Mil Léguas Submarinas ) , além daquele garotinho vestido de Cabo Rusty que chorava , pois alguém fantasiado de vigilante rodoviário roubara seu pastor alemão …

Beatriz Tavares não titubeou : pegou seu Maverick amarelo e seguiu para Jaú em alta velocidade … na metade do caminho naquela encruzilhada em que , para à esquerda você vai para Trabiju e para a direita segue para Boa Esperança do Sul , deparou com moço bem aparentado vestindo uma roupa feita em tecido metálico que a todo instante mudava de cor : azulado , arroxeado , avermelhado , alaranjado , amarelado , esverdeado … O estranho pedia carona sentado a beira do caminho … ela parou …

– Ainda bem que você não passou direto , você não está totalmente perdida , uma vez que está idiotizada pelos personagens do cinema e não pelos da televisão … Vou apresentar-me : sou Exlvz Evhgxw , cidadão de Calipso , um planeta distante … Sou um desertor … Vim com os discos voadores , aqueles terríveis objetos não identificados que percorrem os céus do seu país … Você não imagina , mas observando o seu comportamento , o nosso comandante teve a idéia de controlar Araraquara , enviando vibrações eletro-magnéticas que penetrasem na retina das pessoas , se alojando no campo infra-ótico do insconsciente e fazendo-as se comportarem como seus astros prediletos dos seriados da televisão … após o instante em que todos passarem a se vestir e se comportar como os personagens televisivos , nossas naves irão alterar os seriados da TV , através de edição virtual em modo de transmissão semelhante ao via satélite , de forma que todos cidadão araraquarenses serão tele-controlados …

– Você está louco ??? Por que é que os habitantes do planeta Calipso iriam querer controlar Araraquara ???

– Isto será só o começo , depois de Araraquara , será Dourado , São Carlos , Americana , Campinas , Jundiaí , São Paulo , Rio de Janeiro , Buenos Aires , Caracas , Cidade do México , Nova Iorque , Londres , Paris , Berlim , Moscou , Pequim e muitas outras cidades …

– Está bem me , você me convenceu , o que é que precisamos fazer para impedir esta loucura …

– Precisamos colocar um bloqueador especular na grutinha localizada na praça de Trabiju , você jamais imaginaria , mas aquele local tem a configuração geométrica precisa para o bom funcionamento deste aparelho , que fará com que as pessoas parem de imitar seus queridinhos da TV , isto será suficiente para que o nosso comandante pense que é muito complicado conquistar a Terra , e decida partir para dominar outro planetas … pelo que se pode ver , a impaciência e a ansiedade não são atributos somente terráqueos …

Ao contrário do filme , onde o desertor fracassa , na vida real Exlvz Evhgxw conseguiu deter o avanço das naves de um General Custer sideral e salvar Araraquara , Trabiju , Boa Esperança do Sul e todo o resto do planeta da tão temida invasão interplanetária … hoje vive com Beatriz Tavares em uma aldeia no Xingu , só que entre índios de verdade …

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