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{ Tag Archives } literatura

Estou lendo “Febre de Bola” de Nick Hornby – Editora Rocco, um relato autobiográfico que versa sobre a sua obsessão pelo Arsenal, a vida do autor é narrada através dos jogos de futebol… gozado é que passei a assistir alguma coisa do que se passou no futebol inglês entre 1968 e 1991… gostei de ver o craque irlandês Liam Brady… vejam o que ele fez neste jogo…(*), vejam também uma descrição resumida que Nick Hornby fez da partida:

(*) Liam Brady é o camisa 7 do Arsenal, que neste jogo joga com o uniforme parecido com o do escrete canarinho… reparem que os três gols nascem de jogadas dele… e por falar em escrete canarinho, lembrem-se que Brady fez o gol da vitória na única vitóra da seleção da ilhinha sobre a seleção de Pindorama (na época comandada por Carlos Alberto Silva) no Lansdowne Stadium em Dublin…

WEMBLEY IV – A CATARSE

“ARSENAL vs MANCHESTER UNITED (em Wembley) 12/5/79

Eu não tinha absolutamente nenhuma ambição pessoal antes de fazer 26 ou 27 anos, quando resolvi que podia e iria viver de escrever, larguei meu emprego e fiquei esperando que os editores e/ou produtores de Hollywood me ligassem e pedissem que eu fizesse alguma coisa para eles no escuro. Meus amigos na faculdade devem ter perguntado o que eu pretendia fazer na vida (…) mas o futuro ainda me parecia tão inimáginável e desinteressante (…) de modo que não faço idéia do que posso ter respondido.
(…)
Talvez eu não tivesse nenhuma idéia para mim mesmo, mas tinha grandes idéias para os meus times de futebol. Dois desses sonhos, o ascenso do Cambridge United da Quarta para a Terceira Divisão, e depois da Terceira para a Segunda – já haviam sido realizados. Mas a terceira – e mais ardente – ambição, a de ver o Arsenal ganhar a Taça da da Liga em Wembley (…) ainda permanecia irrealizada.
(…) O Arsenal marcou duas vezes no primeiro tempo, sendo o gol de abertura aos 12 minutos (pela primeira vez em quatro jogos eu via o Arsenal abrir uma vantagem em Wembley) e o segundo gol pouco antes do apito; o intervalo se transformou em 15 minutos abençoadamente relaxados de comemoração ruidosa. Grande parte do segundo tempo transcorreu da mesma forma, até que a cinco minutos do fim o Manchester marcou…e a dois minutos do fim, numa câmara lenta traumatizante e confusa, marcou de novo. (…)
Naquela tarde eu estava tomando conta de um garoto americano, um amigo da família e a sua suave solidariedade e óbvia perplexidade só realçavam de forma constrangedora a minha angústia: eu sabia que aquilo era apenas um jogo, que coisa piores aconteciam em alto mar, que havia gente morrendo de fome na África, que talvez ocorresse um holocausto nuclear nos meses seguintes, sabia que o placar estava em 2 a 2, pelo amor de Deus, e que havia chance do Arsenal descobrir um jeito qualquer de sair da lama (embora soubesse também que a maré havia virado, e que os jogadores estavam com o moral baixo demais para ganhar o jogo na prorrogação). Mas nada que eu sabia podia me ajudar. Estivera a apenas cinco minutos de realizar a única ambição plenamente formada que já possuíra conscientemente desde a idade de 11 anos: e se as pessoas podem se lamentar quando são passadas para trás numa promoção, ou quando deixam de ganhar o Oscar, ou quando seus romances são rejeitados por tudo que é editor em Londres, (…) mesmo quando essas pessoas só vêm sonhando estes sonhos há dois anos, e não há uma década inteira, metade de uma vida como eu vinha sonhando o meu – então, tinha direito de me sentar num pedaço de concreto por dois minutos e tentar conter as lágrimas.
E realmente foi só por dois minutos. Quando o jogo recomeçou Liam Brady invadiu a intermediária do Manchester com a bola (mais tarde ele disse que estava exausto, e tentando apenas impedir que sofrêssemos mais um gol) e lançou-a na lateral para Rix. Eu estava assistindo a tudo isso, mas sem ver nada, mesmo quando Rix fez o cruzamento e o goleiro do Manchester, Gary Bayley não conseguiu espalmar, não estava prestando muita atenção. Mas aí Alan Sunderland meteu o é na bola e a enfiou-a lá dentro, bem dentro daquele gol ali na nossa frente (…)”

( Nick Hornby – tradução: Paulo Reis )

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And nobody seems to like him
They can tell what he wants to do
And he never shows his feelings

( The Foll on The Hill- Lennon/Mc Cartney )

Acabo de ler “O Louco do Cati” de Dyonélio Machado, um dos dez melhores livros escritos em Pindorama, na opinião de ninguém mais ninguém menos que Guimarães Rosa… O livro é um road-book (não existe road-movie, então tem que existir road-book), ou seja, descreve a viagem de um personagem que não sabemos o nome (mas que é conhecido por louco do Cati) por Porto Alegre, Palmares, Tramandaí, Capão da Canoa, Torres, Florianópolis, Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, Florinópolis, Lages, Caxias, Santa Maria, Cacequi, Rosário, Livramento até chegar no Cati, perto da fronteira da República Oriental do Uruguai… ele viaja de bonde, caminhão, carreta, ônibus, a pé, de navio, de trem, de automóvel e de avião… mostrando um Brasil servil porém cortês, triste porém belo, opressivo porém solidário…
O livro, a grosso modo, parece uma descrição de um Bartleby (personagem de Herman Melville) ao estilo de Serafim Ponte Grande (Oswald de Andrade)… fiquem com um pedaço:

“Nem errava a estrada. Mesmo na escuridão da noite calcara-a, certo sem a ver. Quem anda assim, possesso, não erra a estrada, Caminha entre seres sutis, que espionam, que protegem, que velam… Velam por essa sua… sinistra segurança. – Olhos com chispas de fogo haviam-lhe iluminado o caminho – E ele – era um fato- não se perdia…
Já vinha sem chapéu. A água desabava-lhe pelos ombros, cascateando na barra esfiapada de sua capa de segunda mão (duma outra mão, em São Paulo…). As calças (que Lopo, no Rio, lhe arranjara, calças claras, escurecidas depois) batiam-lhes nas canelas magras com um blap ritmado de pano molhado e cheio de barro… Os sapatos do dr. Valério (que ele uma vez lanhara de umidade alegre na geada do pátio de Geraldo), os sapatos faziam também um rumor: – mas era uma voz chiada (de água que tinha dentro), voz que lhe falava – chuap, chuap – a cada passo socado de seu trancão.”

Observações:
1) Fiquei sabendo que a livraria de meu avô, lançou um livro de Dyonélio em 1946 chamado “Passos Perdidos”… vamos ver se eu encontro…
2) Gostaria de rever o documentário “Dr. Dyonelio” que Ivan Cardoso fez sobre este escritor… na época em que vi, não tinha lido “Os Ratos” nem “O Louco do Cati”
3) E por falar em loucos, baixei uma versão de “Foll On The Hill” gravada pelo grupo “Quarteto” em 1969, que o genial Lanny Gordin dá um show… há outras curiosidades, entre elas a canção “Cantiga” de Caetano Zamma e do saudoso Carlos Queiros Telles…
Baixe aqui.

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LE VOYAGE

À Maxime du Camp

I

Pour l’enfant, amoureux de cartes et d’estampes,
L’univers est égal à son vaste appétit.
Ah! que le monde est grand à la clarté des lampes!
Aux yeux du souvenir que le monde est petit!

Un matin nous partons, le cerveau plein de flamme,
Le coeur gros de rancune et de désirs amers,
Et nous allons, suivant le rythme de la lame,
Berçant notre infini sur le fini des mers:

Les uns, joyeux de fuir une patrie infâme;
D’autres, l’horreur de leurs berceaux, et quelques-uns,
Astrologues noyés dans les yeux d’une femme,
La Circé tyrannique aux dangereux parfums.

Pour n’être pas changés en bêtes, ils s’enivrent
D’espace et de lumière et de cieux embrasés;
La glace qui les mord, les soleils qui les cuivrent,
Effacent lentement la marque des baisers.

Mais les vrais voyageurs sont ceux-là seuls qui partent
Pour partir; coeurs légers, semblables aux ballons,
De leur fatalité jamais ils ne s’écartent,
Et, sans savoir pourquoi, disent toujours: Allons!

Ceux-là dont les désirs ont la forme des nues,
Et qui rêvent, ainsi qu’un conscrit le canon,
De vastes voluptés, changeantes, inconnues,
Et dont l’esprit humain n’a jamais su le nom!

II

Nous imitons, horreur! la toupie et la boule
Dans leur valse et leurs bonds; même dans nos sommeils
La Curiosité nous tourmente et nous roule
Comme un Ange cruel qui fouette des soleils.

Singulière fortune où le but se déplace,
Et, n’étant nulle part, peut être n’importe où!
Où l’Homme, dont jamais l’espérance n’est lasse,
Pour trouver le repos court toujours comme un fou!

Notre âme est un trois-mâts cherchant son Icarie;
Une voix retentit sur le pont: «Ouvre l’oeil!»
Une voix de la hune, ardente et folle, crie:
«Amour… gloire… bonheur!» Enfer! c’est un écueil!

Chaque îlot signalé par l’homme de vigie
Est un Eldorado promis par le Destin;
L’Imagination qui dresse son orgie
Ne trouve qu’un récif aux clartés du matin.

Ô le pauvre amoureux des pays chimériques!
Faut-il le mettre aux fers, le jeter à la mer,
Ce matelot ivrogne, inventeur d’Amériques
Dont le mirage rend le gouffre plus amer?

Tel le vieux vagabond, piétinant dans la boue,
Rêve, le nez en l’air, de brillants paradis;
Son oeil ensorcelé découvre une Capoue
Partout où la chandelle illumine un taudis.

III

Etonnants voyageurs! quelles nobles histoires
Nous lisons dans vos yeux profonds comme les mers!
Montrez-nous les écrins de vos riches mémoires,
Ces bijoux merveilleux, faits d’astres et d’éthers.

Nous voulons voyager sans vapeur et sans voile!
Faites, pour égayer l’ennui de nos prisons,
Passer sur nos esprits, tendus comme une toile,
Vos souvenirs avec leurs cadres d’horizons.

Dites, qu’avez-vous vu?

IV

«Nous avons vu des astres
Et des flots, nous avons vu des sables aussi;
Et, malgré bien des chocs et d’imprévus désastres,
Nous nous sommes souvent ennuyés, comme ici.

La gloire du soleil sur la mer violette,
La gloire des cités dans le soleil couchant,
Allumaient dans nos coeurs une ardeur inquiète
De plonger dans un ciel au reflet alléchant.

Les plus riches cités, les plus grands paysages,
Jamais ne contenaient l’attrait mystérieux
De ceux que le hasard fait avec les nuages.
Et toujours le désir nous rendait soucieux!

— La jouissance ajoute au désir de la force.
Désir, vieil arbre à qui le plaisir sert d’engrais,
Cependant que grossit et durcit ton écorce,
Tes branches veulent voir le soleil de plus près!

Grandiras-tu toujours, grand arbre plus vivace
Que le cyprès? — Pourtant nous avons, avec soin,
Cueilli quelques croquis pour votre album vorace
Frères qui trouvez beau tout ce qui vient de loin!

Nous avons salué des idoles à trompe;
Des trônes constellés de joyaux lumineux;
Des palais ouvragés dont la féerique pompe
Serait pour vos banquiers un rêve ruineux;

Des costumes qui sont pour les yeux une ivresse;
Des femmes dont les dents et les ongles sont teints,
Et des jongleurs savants que le serpent caresse.»

V

Et puis, et puis encore?

VI

«Ô cerveaux enfantins!

Pour ne pas oublier la chose capitale,
Nous avons vu partout, et sans l’avoir cherché,
Du haut jusques en bas de l’échelle fatale,
Le spectacle ennuyeux de l’immortel péché:

La femme, esclave vile, orgueilleuse et stupide,
Sans rire s’adorant et s’aimant sans dégoût;
L’homme, tyran goulu, paillard, dur et cupide,
Esclave de l’esclave et ruisseau dans l’égout;

Le bourreau qui jouit, le martyr qui sanglote;
La fête qu’assaisonne et parfume le sang;
Le poison du pouvoir énervant le despote,
Et le peuple amoureux du fouet abrutissant;

Plusieurs religions semblables à la nôtre,
Toutes escaladant le ciel; la Sainteté,
Comme en un lit de plume un délicat se vautre,
Dans les clous et le crin cherchant la volupté;

L’Humanité bavarde, ivre de son génie,
Et, folle maintenant comme elle était jadis,
Criant à Dieu, dans sa furibonde agonie:
»Ô mon semblable, mon maître, je te maudis!«

Et les moins sots, hardis amants de la Démence,
Fuyant le grand troupeau parqué par le Destin,
Et se réfugiant dans l’opium immense!
— Tel est du globe entier l’éternel bulletin.»

VII

Amer savoir, celui qu’on tire du voyage!
Le monde, monotone et petit, aujourd’hui,
Hier, demain, toujours, nous fait voir notre image:
Une oasis d’horreur dans un désert d’ennui!

Faut-il partir? rester? Si tu peux rester, reste;
Pars, s’il le faut. L’un court, et l’autre se tapit
Pour tromper l’ennemi vigilant et funeste,
Le Temps! Il est, hélas! des coureurs sans répit,

Comme le Juif errant et comme les apôtres,
À qui rien ne suffit, ni wagon ni vaisseau,
Pour fuir ce rétiaire infâme; il en est d’autres
Qui savent le tuer sans quitter leur berceau.

Lorsque enfin il mettra le pied sur notre échine,
Nous pourrons espérer et crier: En avant!
De même qu’autrefois nous partions pour la Chine,
Les yeux fixés au large et les cheveux au vent,

Nous nous embarquerons sur la mer des Ténèbres
Avec le coeur joyeux d’un jeune passager.
Entendez-vous ces voix charmantes et funèbres,
Qui chantent: «Par ici vous qui voulez manger

Le Lotus parfumé! c’est ici qu’on vendange
Les fruits miraculeux dont votre coeur a faim;
Venez vous enivrer de la douceur étrange
De cette après-midi qui n’a jamais de fin!»

À l’accent familier nous devinons le spectre;
Nos Pylades l&agrave-bas tendent leurs bras vers nous.
«Pour rafraîchir ton coeur nage vers ton Electre!»
Dit celle dont jadis nous baisions les genoux.

VIII

Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre!
Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l’encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!

Verse-nous ton poison pour qu’il nous réconforte!
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?
Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!

( Charles Baudelaire )

A VIAGEM

A Máxime du camp

I

A quanta criança os mapas e as figuras ama,
O mundo é igual ao seu apetite profundo.
Deus meu, que é grande o mundo à vela em áurea chama!
Aos olhos da saudade, ah que é pequeno o mundo!

Partimos de manhã, fronte que o sonho alaga,
Ávido o coração de desejos e mágoas,
Íamos a seguir, pelo ritmo da vaga,
Ninar nosso infinito ao finito das águas:

Uns, beatos de fugir de uma pátria qualquer;
Outros, do horror de seus berços de azedume,
E astrólogos a arder no olhar de uma mulher
De tirânica Circe, e de amargo perfume.

Por não mudar em feras, trazem a alma cheia
De espaço e de esplendor e de céu com lampejos;
Esta neve que os morde, este sol que os cobreia
Apagam lentamente as impressões dos beijos.

Mas por certo só são na verdade viajantes
Os que só partem por partir como um balão,
Ligeiros corações na Fortuna confiantes,
E sem saber por que, dizem vamos e vão!

Os seus desejos são como nuvens informes,
E sonham como sonha o canhão o conscrito
Ignotas lassidões e volúpias enormes,
Cujos nomes jamais ao mundo há de ser dito.

II

Somos valsa de pião, somos salto de bola;
Ao homem em vigília ou quando o sono nasce
Sempre a curiosidade arrasta e desconsola,
Como um anjo cruel que as estrelas lanhasse.

Fortuna singular de fim sempre em mudança,
E estando sempre ausente, está em todo lugar!
Em que o homem que jamais nela perde a esperança
Só vive a perseguir e quase a delirar.

A nossa lama é trirreme a procurar Içaria;
Sobre a ponte uma voz percute: “abre o olho!”
E, da gávea, outras voz grita, ardorosa e vária:
“Amor!, Glória! Ventura!” Inferno! Era um escolho!

Cada ilhota que vê o homem pela vigia
É Eldorado a surgir feito promessa vã!
Mas a imaginação que se perde na orgia
Só descobre um recife ao nascer da manhã.

Ó pobre sonhador de religiões tão quiméricas!
É preciso prender ou deixar solto ao largo,
O marinheiro ebriado, inventor das Américas,
Cuja miragem torna o pego mais amargo?

Os pés postos na lama, o velho vagabundo,
Sonha, o nariz ao ar, paraíso fagueiro;
E vê o seu olhar uma Cápua no mundo
Toda vez que uma vela ilumina um pardieiro.

III

Oh viajantes do espanto! Ah, que nobres histórias
Lemos em vosso olhar de marinhos mistérios!
Os escrínios mostrai, que trazeis nas memórias,
De jóias a irradiar feitas de astros etéreos!

Queremos viajar sem vapor e sem vela!
Fazei para amainar o tédio das prisões
Por nossa alma passar, tesos como uma tela,
Horizontes de amor, vossas recordações.

O que pudestes ver enfim?

IV

“Nós vimos vaga
Como a estrela também; e o árido litoral;
E não obstante tanta amargura pressaga,
Por vezes como aqui vimos tédio fatal.

“Mas o triunfo do sol sobre o mar furta-cor,
A glória da cidade ao sol quase no poente,
Nos nossos corações punham o inquieto ardor
De mergulhar num céu reflexo atraente.

“Panorama não há, sem país opulento
Em que possa caber o misterioso encanto
Do esboço que nas nuvens delineia o vento
E que o desejo faz que amemos tanto, tanto!

“- O desejo da força o prazer sempre atiça.
Desejo, árvore velha e que o prazer vigora
Mas que no entanto cresce, espessando a cortiça,
Teus ramos querem ver de perto o sol da aurora!

Hás de sempre crescer árvore mais vivaz
Que o cipreste? – Mas nós já colhemos também
Umas ilustrações ao vosso álbum voraz,
Irmãos que belo achais o que de longe vem.

Nós pudemos saudar ídolos com a trompa;
Tronos sempre a brilhar de painéis luminosos;
Palácios de pintor que de feérica pompa,
Ao banqueiros serão os sonhos mais ruinosos;

E costumes que são aos olhos uma orgia;
Mulheres a esplender nas unhas e nos dentes,
E prudentes jograis que a áspide acaricia.”

V

E após, e após enfim?

VI

“Cérebros inocentes!
“Para não esquecer a coisa capital,
Vimos por tudo e sem nunca a haver procurado,
Pela imensa extensão da escala mais fatal,
A tediosa visão do perpétuo pecado:

“A mulher, serva hostil, tão orgulhosa e estúpida,
Amando-se sem rir e sem nenhum fastio;
O homem servo da serva, alma lasciva e cúpida,
Que num esgoto desemboca feito um rio;

“O algoz no seu prazer, o mártir no seu dano;
O festim que perfuma o sangue e que Tempra;
O vinho do poder enervando o tirano,
E o povo a delirar ao chicote que o espera;

“Diversas religiões iguais à nossa em suma,
Todas galgando o céu enfim; e a ânsia divina
Como busca um donzel doce leito de pluma,
Procurando a volúpia em pregos ou em crina;

“A humanidade falsa e a quem o gênio ébria,
E como antigamente agora delirante,
Gritando para Deus em furiosa agonia:
– “Eu te maldigo, ó meu Senhor, meu semelhante!”

E os que prudentes são, amantes da demência
Ao fugir do tropel que a sorte uniu enfim,
E procurando no ópio a enorme sonolência!
– Tal é do globo inteiro o eterno boletim.”

VII

Saber amargo o que se pode obter na viagem!
O mundo, hoje pequeno e quase sem remédio,
Hoje, ontem, amanhã, nos faz ver nossa imagem:
Sempre um oásis de horror num deserto de tédio!

É preciso partir? Ficar? Queres ficar, pois fica:
Parte, se for preciso. Um corre, outro se esgueira,
O inimigo a enganar, de vigilância iníqua,
O Tempo! E muitos são estes que sem canseira,

Correm como o Profeta ou o Judeu errante.
Nem neve nem vagão hão de poder bastar
Para fugir do gladiador tão ultrajante.
Há os que o matam enfim sem sair do lugar.

E após o ponta-pé que o Tempo nos destina
“Avante!” poderemos gritar um momento,
Da maneira que outrora íamos para a China,
Olhos fixos ao largo e cabelos ao vento,

Iremos embarcar sobre os mares sombrios
Tal jovem passageiro e cheio de prazer.
Não ouvis esta voz, de funéreo amavio,
Que canta: “Por aqui! Vós que quereis comer

“Ó Lótus perfumado. É só aqui que se apanha
O fruto de ilusão que vos enche de fome;
Viestes vos embriagar desta doçura estranha
Que há neste entardecer que o Tempo não consome?”

A essa voz familiar revela-se a visão;
Os Pílades além mostram braços vermelhos.
“Para Electra navega o pobre coração!”
Disse aquela a que já beijamos os joelhos.

VIII

Ó Morte, ó capitão! Deixemos este cais!
Este país é o tédio! Ah, soltemos a vela!
Se o firmamento e o mar são negrumes fatais
O nosso coração, se clarões se constela!

Verte-nos teu veneno, ele é que nos conforta!
Tanto o cérebro nosso é de fogo incendido,
No abismo mergulhar, Inferno ou Céu, que importa?
Para o novo encontrar no mais desconhecido!

( Tradução: Jamil Almansur Haddad )

BRISE MARINE

La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les livres.
Fuir! là-bas fuir !
Je sens que des oiseaux sont livres
D´être parmi l´écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retriendra ce coeur qui dans la mer se trempe
O nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture,
Lève l´ancre pour une exotique nature!
Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l´adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu´un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots…
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!

( Stéphane Mallarmé )

BRISA MARINHA

Tradução: Augusto de Campos

A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.
Fugir! Fugir!
Sinto que os pássaros são livres,
Ébrios de se entregar à espuma e aos céus imensos.
Nada, nem os jardins dentro do olhar suspensos,
Impede o coração de submergir no mar
Ó noites! nem a luz deserta a iluminar
Este papel vazio com seu branco anseio,
Nem a jovem mulher que preme o filho ao seio.
Eu partirei!
Vapor a balouçar nas vagas,
Ergue a âncora em prol das mais estranhas plagas!
Um Tédio, desolado por cruéis silêncios,
Ainda crê no derradeiro adeus dos lenços!
E é possível que os mastros, entre ondas más,
Rompam-se ao vento sobre os náufragos, sem mastros, sem mastros, nem ilhas férteis a vogar…
Mas, ó meu peito, ouve a canção que vem do mar!

( Tradução: Augusto de Campos )

Coloquei este dois poemas famosos por um motivo muito simples. Li um ensaio do Roberto Bolaño ( LITERATURA + ENFERMEDAD= ENFERMEDAD – do livro “El gaucho insufrible” Editora Anagrama ), que discorre sobre a relação entre estes dois poemas… percebemos que “Brisa Marinha” é uma espécie de resposta a “A Viagem”…
Reparem que no poema de Baudelaire a viagem começa bem, mas depois os viajantes estão desiludidos:

“Saber amargo o que se pode obter na viagem!
O mundo, hoje pequeno e quase sem remédio,
Hoje, ontem, amanhã, nos faz ver nossa imagem:
Sempre um oásis de horror num deserto de tédio”!

Nesta última imagem, Bolanõs vê um dos diagnósticos mais lúcidos da enfermidade do homem moderno: o oásis de horror no deserto de tédio: para sair do marasmo só o horror, ou seja só o mal.
Mas no final, resta uma opção ao horror e ao tédio: a procura do novo !!!

“No abismo mergulhar, Inferno ou Céu, que importa?
Para o novo encontrar no mais desconhecido!”

Já o outro poema, de Mallarmé, começa assim:

“A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.”

O poeta quer dizer que os prazeres da carne são efêmeros e que ao ler um livro ele já pode ter lido todos, afinal todos os livros são o mesmo livro…
Porém Mallarmé diz que o que resta é a viagem, mas porque é que propõe a viagem sabendo que ela já está condenada??? ( pelo poema de Baudelaire, inclusive ) : Mallarmé quer voltar ao começo e recomeçar…em um processo cíclico-viconiano…
Fiquem com um fragmento do ensaio do genial chileno-mexicanizado:

“Mas enquanto buscamos o antídoto ou o remédio, o novo, aquilo que só podemos encontrar no desconhecido, temos que seguir transitando pelo sexo, pelos livros e pelas viagens, ainda que sabendo que nos levam ao abismo, que é, casualmente, o único lugar onde poderemos encontrar o antídoto.”

( Boberto Bolaño – tradução José Geraldo de Barros Martins )

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SOBRE LEITURAS

Em meio a leituras em lingua hispânica (li um livro de Roberto Bolaño “Monsieur Pain” e estou na metade de outro livro do mesmo autor: “El Gaúcho Insufrible”), resolvi ler um livro sobre as cartas que Paulo Leminski enviou para Régis Bonvicino e encontrei na introdução um artigo que o Leminski publicou em 4/12/1985, na Folha de São Paulo, no qual ele critica o catálogo da esposição “Poesia Intersignos”, organizado pelo poeta Philalelpho Menezes, que estava ocorrendo no Centro Cultural São Paulo (Vergueiro).
O poeta paranaense condena frases como “No marasmo asmático reinante, é necessário separar o passo adiante do passo de lado” , ou seja, Leminski condena a visão desenvolvimentista da arte, aquela coisa de que a arte deve andar para frente, aquela coisa emboaba de achar que a música das décadas passadas não vale nada, que a de hoje é melhor, como se fosse que nem com bens de consumo tecnológicos (imbecilidades do tipo: um computador de hoje é bem melhor que o de dez anos atrás, logo Oasis deve ser melhor que Rolling Stones)…
Vejam o final do artigo de Leminski, e reparem que ele aproveita para alfinetar o atual presidente do senado e membro da academia:

“Um hieróglifo egípcio pode estar muito mais cheio de sentido do que uma palavrinha qualquer borrifada em holograma, que pode não passar de uma mera exposição das possibilidades técnicas de uma nova “mídia”. Ficar basbaque com isso, pra mim, é coisa de caipira. Como poeta de vanguarda, eu, caipira “de luxe”, prefiro Homero. Lido em grego, é claro.
Com Julio Plaza, tenho vários poemas passados para vídeo-texto, recurso que eu acho legal, o texto em movimento (as “film-letras”, enfim, que o Augusto de Campos, poeta, profeta, já queria em 1955, para os poemas em cores do seu “poetamenos”).
Esses poemas “menos” foram apresentados na Bienal passada.
Como se vê, não sou nenhum brucutu poético defendendo o soneto, nem tenho o hábito de soltar marimbondos de fogo pela boca.
Mas não posso ficar quieto quando um discurso literalmente unilateral tenta invadir uma área, vital pra mim.
Hoje, sei. “Vanguarda” é coisa que pode estar em toda parte. Augusto a descobre em Lupicínio Rodrigues. Haroldo em Li-Tai-Po. Itamar Assumpção em Adoniram Barbosa.
O futuro, Menezes, é muito pobre.
Ele vive às custas do passado.
E acho mesmo que a própria idéia de “evolução” e “desenvolvimento”, aplicada à arte, representa uma apropriação indébita, extraída da área tecnológica, econômica e industrial, onde aí se pode, sim, falar em “desenvolvimento” e “evolução”.
Um Boeing voa mais alto, mais rápido e transporta mais passageiros que um teco-teco, com certeza. Adeus teco-teco!
No terreno da arte, porém, não há “evolução” desse tipo.
Um quadro de Matisse não é portador de mais informação do que uma tela de Rembrandt. O teatro de Brecht não é superior ao de Sófocles. Um filme de Godard não abole a existência do “Cidadão Kane”. Uma canção de Caetano ou uma ópera de Arrigo Barnabé não são, necessariamente, melhores que uma canção de Ismael Silva ou de Dolores Duran. Ou de Arnaut Daniel.
A arte não avança, indo “para a frente”, como as pernas quando caminham. Avança para todos os lados, como a pele num dia de muito frio ou muito calor.
A metáfora do “passo a frente” vem nos lembrar que a palavra “vanguarda” é uma expressão de origem militar, designando o corpo de elite que vai adiante, abrindo caminho para o grosso da tropa, que vem lá atrás. Com o conceito de “produssumo”, Décio Pignatari liquidou com esse equívoco, há vários anos.
Parente próximo do tal “salto qualitativo” invocado no catálogo para qualificar a “Poesia Intersignos” da mostra. Essa expressão também é uma apropriação indébita, trazida, agora, da área da Biologia, da teoria da evolução de Darwin, uma teoria aristocrática, de inconfundível sabor britânico.
Quando a mim, acho que a vida é plena em todos os seus momentos. E não vejo em que um tigre represente alguma coisa melhor que um caracol. Nem sei o que é que a cascavel tem que o vírus da Aids não tenha também.
Mas a palavra é tirânica, é o instrumento das leis. Onde a palavra chega, já chega botando ordem. E dando ordens, não há organização sem comando, sem hierarquia, sem autoridade. Bem mais democráticas são a vida, as coisas e as obras de arte.
Toda teorização de vanguarda corre, sempre, um perigo, que eu chamaria de “tendência penal”. Nessas teorizações, em geral, réu do crime mais-que-perfeito de ser pretérito, o passado é condenado à morte e seus bens passam todos para seus legítimos herdeiros, as obras que um tribunal, uma corte suprema (qual?), decreta os únicos com direito a uma existência plena e atual.
“Novidade” não é o novo, disse o Augusto. E o novo não é tudo, digo eu com meus buttons.
O que interessa mesmo são as obras, a produção, o “poiein”, o fazer. Outras todas as estradas, todas as direções: outros sentidos.
Eu, se fosse você, Menezes, eu ia nessa mostra, curtia os poemas, e esquecia essas palavras todas.
O único modo de fazer as palavras perderem sua tendência nazi-fascista, essa mania de marchar em passo-de-ganso, é fazê-las cantar. Ou voar. O que, no fundo, é a mesma coisa.”

(Paulo Leminski)

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“Não é realmente difícil de compreender baseados em que princípios de interesse nossos antepassados agiam? Eram tão cebos que não percebiam que a destruição de míriades de indivíduos é apenas uma positiva vantagem para a massa!(…)
Todos os homens ‘votavam’, como diziam eles, o que quer dizer que se intrometiam nos negócios públicos, até que afinal se descobriu que o que é negócio de toda a gente não é negócio de ninguém e que a “República” (era assim que se chamava a coisa) estava sem governo nenhum” (…) Enquanto os filósofos, contudo, se ocupavam em corar de sua estupidez por não terem previsto estes males inevitáveis e se esforçavam por inventar novas teorias, a questão foi levada a uma solução brusca por um sujeito chamado Plebe, que tomou em suas mãos e estabeleceu um regime despódico em comparação com o qual os dos fabulosos Zeros e Helofagabaluses eram respeitáveis e deleitosos. (…)”

( Edgar Allan Poe )

Acabei de ler todas as obras de ficção publicadas pelo famoso escritor norte-americano, e agora me dedico à leitura de seus ensaios. Fiquei impressionado por um conto denominado “Mellonta Tauta” (que significa “Coisas do Futuro” em grego) publicado em 1849 no Godey’s Lady’s Book. Este texto descreve uma carta (enviada do futuro, mais precisamente em primeiro de abril de 2848) encontrada em uma garrafa… Neste conto, cujos fragmentos estão expostos acima, Poe prevê, entre outras coisas, a preponderância das massas sobre o indivíduo, a falácia da democracia com a mistura entre o Público e o Privado, a ascenção de governos totálitários-popularescos…
Realmente ele era profético…
Curioso é que lendo “A Filosofia da Composição” em que ele relata o método empregado para conceber seu mais famoso poema, descubro que Poe começou a escrever “O Corvo” pela antepenúltima estrofe, e que a primeira palavra empregada no poema foi PROFETA, vejam o que ele dizia:

“Aí, então, pode-se dizer que o poema teve seu começo pelo fim por que devem começar todas as obras de arte, porque foi nesse ponto de minhas considerações prévias que, pela primeira vez, tomei do papel e da pena para compor a estância:

Prophet!” said I, “thing of evil–prophet still, if bird or devil!
By that heaven that bends above us–by that God we both adore
Tell this soul with sorrow laden, if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden, whom the angels name Lenore
Clasp a rare and radiant maiden, whom the angels name Lenore?
Quoth the raven, “Nevermore.”

Profeta!” exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!
Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,
fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,
verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora,
essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais!”

Não seria esta profética ave negra, uma metáfora do própio POEta que pousado no busto branco de Minerva estava dizendo que após sua chegada a literatura ocidental NUNCA MAIS seria a mesma???

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TÁCTICA Y ESTRATÉGIA

Mi táctica es
mirarte
aprender como sos
quererte como sos

mi táctica es
hablarte
y escucharte
construir con palabras
un puente indestructible

mi táctica es
quedarme en tu recuerdo
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
pero quedarme en vos

mi táctica es
ser franco
y saber que sos franca
y que no nos vendamos
simulacros
para que entre los dos
no haya telón
ni abismos

mi estrategia es
en cambio
más profunda y más
simple
mi estrategia es
que un día cualquiera
mo sé cómo ni sé
con qué pretexto
por fin me necesites.

( Mário Benedetti )

Domingo passado faleceu este grande escritor da República Oriental do Uruguay. Uma coisa que poucos sabem é que ele fez uma ponta em um filme de Eliseo Subiela chamado “El Lado Obscuro del Corazón”(*)… a cena é clássica: Oliverio (Dario Grandinetti), um jovem poeta entra em prostíbulo em Montevidéu, pede uma cerveja e vai dançar um bolero com Anna (Sandra Ballestreros), uma prostituta. Depois os dois voltam ao balcão e Olivério começa a declamar o poema retromencionado … no final do poema Anna toma a palavra e declama a úlima estrofe e diz:
– Tática e Estratégia, Mário Benedetti. Vais me levar a alguma parte?
– Você gosta de Mário Benedetti? – Oliverio pergunta surpreso.
– Não vim aqui para falar de literatura, aqui é um cabaré, não um clube literário.
– Desculpe-me, vamos para sua casa?
E os dois saem de cena … logo depois aparece o própio Mario Benedetti, interpretando um oficial alemão da marinha mercante, e declama um poema na lingua tedesca para outra mulher da vida…
Esta é uma daquelas cenas que por si só, valem mais que dezenas destes filmes medíocres que abundam nas locadoras…

(*) Este título também é homenagem a um outro poema de Benedetti e foi traduzido por mim em 27/06/2003…veja aqui.

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“Estou ficando louca?, pensei. Foram esses a loucura e o medo de Arthur Gordon Pym? Estou recuperando o juízo numa velocidade vertiginosa? As palavras estalavam dentro de minha cabeça, como se uma giganta estivesse gritando dentro de mim, mas do lado de fora o silêncio era total. A oeste, o sol se punha, e as sombras, lá embaixo, no vale, se encompridavam e o que antes era verde agora era verde-escuro, e o que antes era marrom agora era cinza-escuro ou negro.
Vi então uma sombra diferente, como a que as nuvens projetam quando se movem depressa por um grande prado, se bem que essa sombra não fosse projetada por nenhuma nuvem no extremo oriental do vale. Que era isso? Perguntei-me.
(…) E soube que a sombra que deslizava pelo grande prado era uma multidão de jovens, uma inacabável legião de jovens que se dirigia a algum lugar.
(…) Caminhavam para o abismo. Creio que soube disso desde o primeiro momento que os vi.
Sombra ou massa de crianças, caminhando indefectivelmente para o abismo.
Depois ouvi um múrmúrio que o ar frio do entardecer no vale levantava em direção às encostas e as escarpas, e fiquei estupefata.
Estavam cantando.”

(Roberto Bolaño)

Quem ler “O Amuleto” (livro do qual retirei o fragmento citado acima) perceberá que Bolanõs cita o (único) romance de Edgar Allan Poe, “Narrativa de Arthur Gordon Pym”, e nesta citação se desvenda uma das chaves do livro: Tanto a protagonista do livro do chileno-mexicanizado, Auxilio Lacouture, quanto o personagem do Bostoniano- baltimorizado, Arthur Gordon Pym, passam dias enclausurados (ela acuada no banheiro da Faculdade de Filosofia e Letras na Cidade Do México em 1968, diante da invasão de policiais no campus universitário) ele no porão do navio Grampus (ele foge dos pais clandestinamente, escondido no porão de um navio, porém este navio sofre um motim e o amigo que iria tirar ele de lá demora pra burro); ela comendo papel higiênico, ele couro de sapato, e no final de ambas obras, ambos protagonistas afrontam abismos terríveis nos finais de ambas obras!!!
(reparem também na metáfora entre a juventude mexicana e a cruzada das crianças
Li recentemente, além destes livos, uma pequena obra prima de Herman Melville: “Baterbly” … Genial: um copista que em um escritório de advocacia dizia diante das ordens do chefe: “prefiro não fazer” !!!

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CItação do dia:

“For eyes we have no models in the remotely antique. It might have been, too, that in these eves of my beloved lay the secret to which Lord Verulam alludes. They were, I must believe, far larger than the ordinary eyes of our own race. They were even fuller than the fullest of the gazelle eyes of the tribe of the valley of Nourjahad. Yet it was only at intervals –in moments of intense excitement –that this peculiarity became more than slightly noticeable in Ligeia. And at such moments was her beauty –in my heated fancy thus it appeared perhaps –the beauty of beings either above or apart from the earth –the beauty of the fabulous Houri of the Turk. The hue of the orbs was the most brilliant of black, and, far over them, hung jetty lashes of great length. The brows, slightly irregular in outline, had the same tint. The “strangeness,” however, which I found in the eyes, was of a nature distinct from the formation, or the color, or the brilliancy of the features, and must, after all, be referred to the expression. Ah, word of no meaning! behind whose vast latitude of mere sound we intrench our ignorance of so much of the spiritual. The expression of the eyes of Ligeia! How for long hours have I pondered upon it! How have I, through the whole of a midsummer night, struggled to fathom it! What was it –that something more profound than the well of Democritus –which lay far within the pupils of my beloved? What was it? I was possessed with a passion to discover. Those eyes! those large, those shining, those divine orbs! they became to me twin stars of Leda, and I to them devoutest of astrologers. (…)
And thus how frequently, in my intense scrutiny of Ligeia’s eyes, have I felt approaching the full knowledge of their expression –felt it approaching –yet not quite be mine –and so at length entirely depart! And (strange, oh strangest mystery of all!) I found, in the commonest objects of the universe, a circle of analogies to theat expression. I mean to say that, subsequently to the period when Ligeia’s beauty passed into my spirit, there dwelling as in a shrine, I derived, from many existences in the material world, a sentiment such as I felt always aroused within me by her large and luminous orbs. Yet not the more could I define that sentiment, or analyze, or even steadily view it. I recognized it, let me repeat, sometimes in the survey of a rapidly-growing vine –in the contemplation of a moth, a butterfly, a chrysalis, a stream of running water. I have felt it in the ocean; in the falling of a meteor. I have felt it in the glances of unusually aged people. And there are one or two stars in heaven –(one especially, a star of the sixth magnitude, double and changeable, to be found near the large star in Lyra) in a telescopic scrutiny of which I have been made aware of the feeling. I have been filled with it by certain sounds from stringed instruments, and not unfrequently by passages from books.” (*)

( do conto “Ligéia” de Edgar Allan Poe )

(*) “Para os olhos, não encontramos modelos na remota antiguidade. Podia ser, também, que naqueles olhos de minha bem-amada repousasse o segredo a que alude Lorde Verulam. Eram, devo crer, bem maiores que os olhos habituais de nossa raça. Eram mesmo mais rasgados que os mais belos olhos das gazelas da tribo de Nourjahad. No entanto, era somente a intervalos, em movimentos de intensa excitação, que essa peculiaridade se tornava mais vivamente perceptível em Ligéia. E, em tais momentos, era a sua beleza – pelo menos assim surgia diante de minha fantasia exaltada – a beleza de criaturas que se acham acima ou fora da terra, a beleza da fabulosa huri dos turcos. As pupilas eram do negro mais brilhante, veladas por longuíssimas pestanas de azeviche. As sobrancelhas, de desenho levemente irregular, eram da mesma cor. Toda a “estranheza” que eu descobria nos olhos era de natureza distinta da forma, da cor ou do brilho deles e devia ser, decididamente, atribuida à sua expressão. Ah, palavra sem significação, e simples som, por trás de cuja vasta latitude entrincheiramos nossa ignorância de tanta coisa espiritual. A expressão dos olhos de Ligéia. . . Quantas e quantas horas refleti sobre ela! Quanto tempo esforcei-me por sondá-la, durante uma noite inteira de verão! Que era então aquilo – aquela alguma coisa mais profunda que o poço de Demócrito – que jazia bem no fundo das pupilas de minha bem-amada? Que era aquilo? Obsessionava-me a paixão de descobri-lo. Aqueles olhos, aquelas largas, brilhantes, divinas pupilas tornaram-se para mim as estrelas gêmeas de Leda e eu para elas o mais fervente dos astrólogos.
E assim, quantas vezes, na minha intensa análise dos olhos de Ligéia, senti aproximar-se o conhecimento completo de sua expressão! Senti-o aproximar-se, e contudo não estava ainda senhor absoluto dele, e por fim desaparecia totalmente! E (estranho, oh, o estranho de todos os mistérios!) descobri nos objetos mais comuns do universo uma série de analogias para aquela expressão. Quero dizer que, depois da época em que a beleza de Ligéia passou para o meu espírito e nele se instalou como num relicário, eu deduzia de vários seres do mundo material, uma sensação idêntica a que me cercava e me penetrava sempre, quando seus grandes e luminosos olhos me fitavam.
Entretanto, nem por isso sou menos paz de definir essa sensação, de analisá-la, ou mesmo de ter dela uma percepcão integral. Reconheci-a, repito-o, algumas vezes no aspecto duma vinha rapidamente crescida, na contemplação de uma falena, duma borboleta, duma crisálida, duma corrente de água precipitosa. Senti-a no oceano, na queda dum meteoro. Senti-a nos olhares de pessoas extraordinariamente velhas. E há uma ou duas estrelas no céu (uma especialmente, uma estrela de sexta grandeza dupla e mutável, que se encontra perto da grande estrela da Lira) que, vistas pelo telescópio, me deram aquela sensação. Sentindo-me invadido por ela ao ouvir certos sons de instrumentos de corda e, não poucas vezes, ao ler certos trechos de livros.”

Obs.: Vejam como Poe foi precursor tanto de Borges quanto de Machado de Assis, entre outros… se alguém ler o trecho final deste fragmento do conto “Ligéia” e não souber que seu autor foi o gênio de Baltimore, vai achar que quem escreveu foi o brujo de Palermo, quanto ao Bruxo do Cosme-Velho, (que chegou até a traduzir “O Corvo”), será que os olhos de Ligéia não prenunciam os olhos de Capitu???

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Citação do dia:

“Poe concebia Deus como um poeta. O universo, portanto, era uma criação artística, um poema composto por Deus. Sendo o universo um poema, a reação apropriada a ele deveria ser estética e as criaturas de Deus se harmonizariam com Ele na medida em que sua imaginação se enlevasse pela beleza e harmonia da sua criação. E não adorar a beleza, não considerar divino o conhecimento poético seria dar as costas a Deus e cair na desgraça.
Segundo o mito do cosmos de Poe, o planeta Terra fez justamente isso. Caiu e se distanciou de Deus por exaltar a razão científica acima da intuição poética, e por fiar-se no fato material em vez do conhecimento visionário. Os habitantes da Terra então se corromperam pelo racionalismo e pelo materialismo; suas almas adoeceram; e Poe vê essa doença do espírito humano contaminando a natureza física. Os bosques e prados e águas da Terra perderam assim sua beleza original e deixaram de expressar a imaginação de Deus; a paisagem privou-se da perfeição primeira de sua composição, na mesma proporção em que os homens perderam sua capacidade de perceber o belo.
Sendo a Terra um planeta em desgraça, a vida sobre ela é necessariamente um tormento para o poeta… e sua alma é oprimida por tudo o que há ao seu redor.
… Seu único recurso é abandonar qualquer preocupação com as coisas terrenas e dedicar-se o mais exclusivamente possível a visões extraordinárias com a esperança de, em lampejos, encontrar a beleza paradisíaca que é o pensamento de Deus.”

( Richard Wilbur )

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Acabei de ler “Os Lusíadas”… e gostei sobretudo do final, quando após ter descoberto o caminho das Índias, Vasco da Gama é levado por Vênus para a Ilha dos Amores, onde seus marinheiros são contemplados pelas ninfas com vinhos, manjares e outros prazeres … Lá é dado ao ilustre navegador a oportunidade de contemplar o funcionamento do universo (segundo a astronomia da época, a ptolomaica). Adoro estes momentos em que os personagens após enfrentarem agruras, alcançam um vislumbre do universo !!!
Aqui vão três fragmentos que selecionei, o primeiro (estrofe 14 do Canto VI) quando Baco (que quer atrapalhar as conquistas lusitanas) vai até o reino de Netuno, convencê-lo para mandar tempestades para afundar a heróica esquadra … o segundo fragmento (estrofes 79 e 80 do Canto X) é quando Vasco da Gama vislumbra a “máquina do mundo” e o terceiro (estrofe 145 do Canto X) é um desagravo de Luís de Camões contra os seus patrícios (antevendo assim a derrocada do Império Português) … É curioso que Camões, antes de morrer, vendo Portugal passar para o domínio espanhol (devido ao desaparecimento de Dom Sebastião em Alcácer-Quibir) escreveu para um amigo estas palavras: “Enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei de morrer nela, mas com ela”.
Aqui vão os fragmentos:

Pouca tardança faz Lieu irado
Na vista destas cousas, mas entrando
Nos paços de Neptuno, que, avisado
Da vinda sua, o estava já aguardando,
Às portas o recebe, acompanhado
Das Ninfas, que se estão maravilhando
De ver que, cometendo tal caminho,
Entre no reino d’água o Rei do vinho

(Os Lusíadas – estrofe 14 do canto VI)

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

«Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

(Os Lusíadas – estrofes 79 e 80 do Canto X)

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhüa austera, apagada e vil tristeza.

(Os Lusíadas – estrofe 145 do canto X)

Para finalizar fiquem com a homenagem que Jorge Luís Borges fez ao poeta lusitano:

“A Luís de Camões

Sem cólera nem mágoa arromba o tempo
As heróicas espadas. Pobre e triste,
À nostálgica pátria regrediste
Para com ela morrer nesse momento,
O capitão, no mágico deserto.
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da derradeira
Margem compreendeste humildemente
Que o império perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.”

( Jorge Luis Borges)

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