SOBRE LEITURAS
Em meio a leituras em lingua hispânica (li um livro de Roberto Bolaño “Monsieur Pain” e estou na metade de outro livro do mesmo autor: “El Gaúcho Insufrible”), resolvi ler um livro sobre as cartas que Paulo Leminski enviou para Régis Bonvicino e encontrei na introdução um artigo que o Leminski publicou em 4/12/1985, na Folha de São Paulo, no qual ele critica o catálogo da esposição “Poesia Intersignos”, organizado pelo poeta Philalelpho Menezes, que estava ocorrendo no Centro Cultural São Paulo (Vergueiro).
O poeta paranaense condena frases como “No marasmo asmático reinante, é necessário separar o passo adiante do passo de lado” , ou seja, Leminski condena a visão desenvolvimentista da arte, aquela coisa de que a arte deve andar para frente, aquela coisa emboaba de achar que a música das décadas passadas não vale nada, que a de hoje é melhor, como se fosse que nem com bens de consumo tecnológicos (imbecilidades do tipo: um computador de hoje é bem melhor que o de dez anos atrás, logo Oasis deve ser melhor que Rolling Stones)…
Vejam o final do artigo de Leminski, e reparem que ele aproveita para alfinetar o atual presidente do senado e membro da academia:
“Um hieróglifo egípcio pode estar muito mais cheio de sentido do que uma palavrinha qualquer borrifada em holograma, que pode não passar de uma mera exposição das possibilidades técnicas de uma nova “mídia”. Ficar basbaque com isso, pra mim, é coisa de caipira. Como poeta de vanguarda, eu, caipira “de luxe”, prefiro Homero. Lido em grego, é claro.
Com Julio Plaza, tenho vários poemas passados para vídeo-texto, recurso que eu acho legal, o texto em movimento (as “film-letras”, enfim, que o Augusto de Campos, poeta, profeta, já queria em 1955, para os poemas em cores do seu “poetamenos”).
Esses poemas “menos” foram apresentados na Bienal passada.
Como se vê, não sou nenhum brucutu poético defendendo o soneto, nem tenho o hábito de soltar marimbondos de fogo pela boca.
Mas não posso ficar quieto quando um discurso literalmente unilateral tenta invadir uma área, vital pra mim.
Hoje, sei. “Vanguarda” é coisa que pode estar em toda parte. Augusto a descobre em Lupicínio Rodrigues. Haroldo em Li-Tai-Po. Itamar Assumpção em Adoniram Barbosa.
O futuro, Menezes, é muito pobre.
Ele vive às custas do passado.
E acho mesmo que a própria idéia de “evolução” e “desenvolvimento”, aplicada à arte, representa uma apropriação indébita, extraída da área tecnológica, econômica e industrial, onde aí se pode, sim, falar em “desenvolvimento” e “evolução”.
Um Boeing voa mais alto, mais rápido e transporta mais passageiros que um teco-teco, com certeza. Adeus teco-teco!
No terreno da arte, porém, não há “evolução” desse tipo.
Um quadro de Matisse não é portador de mais informação do que uma tela de Rembrandt. O teatro de Brecht não é superior ao de Sófocles. Um filme de Godard não abole a existência do “Cidadão Kane”. Uma canção de Caetano ou uma ópera de Arrigo Barnabé não são, necessariamente, melhores que uma canção de Ismael Silva ou de Dolores Duran. Ou de Arnaut Daniel.
A arte não avança, indo “para a frente”, como as pernas quando caminham. Avança para todos os lados, como a pele num dia de muito frio ou muito calor.
A metáfora do “passo a frente” vem nos lembrar que a palavra “vanguarda” é uma expressão de origem militar, designando o corpo de elite que vai adiante, abrindo caminho para o grosso da tropa, que vem lá atrás. Com o conceito de “produssumo”, Décio Pignatari liquidou com esse equívoco, há vários anos.
Parente próximo do tal “salto qualitativo” invocado no catálogo para qualificar a “Poesia Intersignos” da mostra. Essa expressão também é uma apropriação indébita, trazida, agora, da área da Biologia, da teoria da evolução de Darwin, uma teoria aristocrática, de inconfundível sabor britânico.
Quando a mim, acho que a vida é plena em todos os seus momentos. E não vejo em que um tigre represente alguma coisa melhor que um caracol. Nem sei o que é que a cascavel tem que o vírus da Aids não tenha também.
Mas a palavra é tirânica, é o instrumento das leis. Onde a palavra chega, já chega botando ordem. E dando ordens, não há organização sem comando, sem hierarquia, sem autoridade. Bem mais democráticas são a vida, as coisas e as obras de arte.
Toda teorização de vanguarda corre, sempre, um perigo, que eu chamaria de “tendência penal”. Nessas teorizações, em geral, réu do crime mais-que-perfeito de ser pretérito, o passado é condenado à morte e seus bens passam todos para seus legítimos herdeiros, as obras que um tribunal, uma corte suprema (qual?), decreta os únicos com direito a uma existência plena e atual.
“Novidade” não é o novo, disse o Augusto. E o novo não é tudo, digo eu com meus buttons.
O que interessa mesmo são as obras, a produção, o “poiein”, o fazer. Outras todas as estradas, todas as direções: outros sentidos.
Eu, se fosse você, Menezes, eu ia nessa mostra, curtia os poemas, e esquecia essas palavras todas.
O único modo de fazer as palavras perderem sua tendência nazi-fascista, essa mania de marchar em passo-de-ganso, é fazê-las cantar. Ou voar. O que, no fundo, é a mesma coisa.”
(Paulo Leminski)
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