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BAR LÉO

I – A Volta Dele

Bar Léo: esquina da rua Aurora com a rua dos Andradas… foi lá que ele a conhecera… agora, vinte e dois anos depois ele retornara àquele bar… durante este período, após a separação ele vivera em outras cidades: primeiro em El Bolsón (sua janela dava vista para o Cerro Piltriquitrón) na patagônia argentina, depois em Howth (sua janela dava vista para a Baía de Dublin) na Irlanda, depois em Tete, Moçambique (sua janela dava vista para a o rio Zambesi) e em Penha de França, perto de Goa, na região da Índia em que se fala o português (sua janela dava vista para o rio Mandovi)… agora ele estava junto ao mesmo balcão… voltara a morar na paulicéia após tanto tempo… para ele a capital paulistana estava mudada… percebera uma porção de lojas populares na Av. Paulista, sinal de que os grandes hotéis & os grandes escritórios estavam migrando para a região de Av. Luis Carlos Berrini, como profetizara seu professor de planejamento urbano, na época da faculdade: “o centro financeiro de São Paulo historicamente se desloca na direção Oeste”… Era o início da profecia pensava: – “daqui a pouco as lojas populares irão se infiltrar nos Jardins… quando inaugurar a loja Marisa na rua Oscar Freire e quando aquele loja dos alfarrojes Havanna da rua Lorena se transformar em mais uma filial do Habib`s, será o sinal definitivo da decadência daquele bairro, processo bastante natural, afinal os Campos Elísios, a versão paulistana do Champs-Élysées não se transformaram na Cracolândia?” E por falar em Cracolândia, agora estava nos arredores dela, mas era de dia e não tinha problema, aquela zona só era perigosa à noite, aliás sempre fora um lugar mal frequentado.., desde a primeira vez em que ele foi ao Bar Léo… sabia que lá fechava cedo, pois “depois que o sol se põe… a coisa pesa naquela região… Mas era de dia, um dia ensolarado por sinal…

Pediu um chopp…. quando tomou o primeiro gole veio a certeza: aquele era o melhor chopp do mundo… seu sabor, seu aroma, sua cor, sua cremosidade era inigualáveis… mas junto com a lembrança do sabor veio a lembrança daquela época: a decadência do Bexiga como pólo de vida noturna e a ascenção de Vila Madalena, o vídeo como forma de registro da realidade, seus vídeos experimentais, os discos de vinil, os lado B dos discos de vinil, a expressão “Lado B” era curiosa: “o lado B de fulano”, imagine falar em Lado B para um adolescente de hoje que só ouve MP3… lembrou que naquela época sempre tinham filmes do John Huston na TV, passavam na sessão coruja… agora quase ninguém se lembra do John Huston… notou também uma mudança na paisagem urbana, a começar pela cor dos automóveis: tudo prateado… naquela época não, os carros eram coloridos… isto até poderia ser motivo de uma tese: o automóvel como elemento da paisagem urbana: a mudança na cor dos carros (ditada pelas famosas pesquisas de mercado) alterando a paisagem da metrópole… depois lembrou dela, lembrou que ligava para ela do orelhão…depois lembrou das orelhas dela, bem como das demais partes do corpo dela… lembrou de quando a encontrara naquele mesmo bar, estava chovendo e ele para puxar conversa falou que achava que São Paulo era mais bonita quando chove, pois a chuva lava toda a imundíce da cidade… ela achou graça… e aí começou o namoro…

Amarílio Amélio Olivério (este é o nome de nosso protagonista) pediu o segundo chopp e continuou a recordar aquela época : foi através dela que ele descobrira as cantoras do passado, Dolores Duran, Maysa, Elizeth Cardoso, Dalva de Oliveira, Isaurinha Garcia… (as duas últimas paulistaníssimas, perceba-se pelo sotaque)… se quanto a música ela o influenciara, quanto a literatura ocorrera o inverso: através dele, ela teve contato com a obra de Charles Baudelaire, Torquato Neto, Paulo Leminski na poesia, Mellvile, Machado de Assis e James Joyce no romance, Vilém Flusser e Arthur Schopenhauer na filosofia… este último, por sinal, tem uma teoria muito curiosa: a de que sempre escolhemos os nossos destinos, de modo que os encontros fortuitos são conversas com local data e horário previamente combinados… de todos os livros que ele à ela emprestara, os que mais a encantaram foram “O Mundo Como Vontade e Representação” e “Parerga e Paralipomena” de Schopenhauer, tanto que ela nunca devolvera o livro a ele… e eis que justamente quando ele terminou o segundo chope se recordou de que tinha emprestado aqueles livros a ela… lá fora começara a chover… uma chuva torrencial…

I – O Vulto Dela

Antes de conseguir que o garçon o avistasse para pedir o terceiro chope, Amarílio observa ela entrar no bar carregando dois livros (sim era ela, sim eram os livros) e ir até onde ele estava:

– Amarílio Amélio Olivério??? Nossa você não mudou nada!!!

– Você é que não mudou nada, Marília Amélia Mourélia…

– Como você soube que eu estava aqui?

– Mas eu não sabia que você estava aqui, disseram que você estava morando fora do Brasil ha um tempão… eu só estava passando por perto e resolvi tomar um chope…

– Mas então porque é que você trouxe os meus livros…

– Nossa que coincidência…

– E que coincidência maior é o fato dos livros serem justamente deste filósofo alemão que não acredita nas coincidências…

– Mas posso ficar com os livros emprestados só um pouquinho mais… é que justamente agora resolvi relê-los …

– Fique com eles não precisa devolver…

– Mas você adorava seus livros… quando perdia um ficava horas procurando pela casa obsessivamente…

– É que eu estou achando que nossas bibliotecas logo serão a mesma…

– Um brinde!!!

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ISTO É IGUAL AQUILO

Agostinho Junqueira acordou desperançoso naquele dia… ele não sabia o porque de tal estado de espírito, porém acordara daquela forma e pronto !!! Após um farto café da manhã, a base de suco de grapefruit, chá preto, uma pêra e de seu sanduíche predileto (pão, presunto crú e azeite alentejano), ele foi para aquele cantinho da casa em que costumava escrever seus escritos, este, no caso era encomenda de um jornal importante, para o suplemento cultural de domingo… nele, o nosso protagonista, confirmara aquela velha teoria de que existem coisas que são o que são, porém também podem ser outras coisas… citando exemplos existentes ao longo da história daa literatura (Baudelaire, Blake, Cortazar, etc.) Agostinho Junqueira sugere que o a luta de Muhamad Ali X George Foreman foi também a batalha de Kursk (*) e também foi a gripe que o assolou na semana passada… seu artigo terminava assim:

“Os grandes embates da história, estão estritamente relacionados com os maiores feitos no esporte, bem como os mínimos acontecimentos do cotidiano… ao contrário do que muitos pensam, existe um paralelismo magnético entre a história das nações com a história das copas do mundo… outro paralelismo ocorre entre acontecimentos cotidianos e os jogos de futebol ao longo da semana o que não deixa de ser uma demonstração cabal que a vida em seu conjunto é um fenômeno cíclico e inter-relacionado”.

Após mandar o texto para a publicação o nosso protagonista resolveu andar a pé pelo bairro e tomar alguma coisa em um bar qualquer… após caminhar algumas quadras ele pensou bem e descobriu o motivo de tal desesperança matinal: apesar dos jornais mostrarem-no como um intelectual bem sucedido, que sempre saia nas colunas sociais acompanhados das mais exuberantes beldades, ele estava sozinho… sabia que aquela imagem que a mídia fazia dele era apenas uma lenda, uma holografia vazia… aquela pessoa não era ele… aquele mundinho bem sucedido não era o dele… após pensar nestas coisas, ele escolheu um boteco aleatoriamente e sentou-se em uma mesa junto a entrada e pediu uma cerveja… enquanto aguardava a bebida reparou em uma mulher que compenetradamente lia um livro antigo na mesa ao lado… aquilo o deixou curioso… depois de algum tempo, (quando a cerveja já estava na metade) tomou coragem e perguntou a dama que livro era aquele.

– Ora, é o “Zohar – O Livro do Esplendor” – respondeu ela- você nunca ouviu falar?

– Vagamente… sei que é uma obra clássica do judaísmo, e também que fala sobre Cabala… dois temas que eu não domino… desculpe perguntar, mas você é judia ou ligada a estes grupos de Cabala-Pop, que agora estão na moda?

– Nem uma coisa nem outra, apenas gosto de boa literatura… só isso…

– E quem é o autor deste livro? E em que época foi escrito?

Na verdade este é um tema controverso pois a lenda diz que foi escrito no século II pelo rabino Shimon bar Yoachai, após este ficar 13 anos vivendo isolado em uma caverna, mas não há provas concretas nem da existência do rabino nem dos manuscritos em aramaico que deram origem ao livro… no Século XIII entretanto, um rabino espanhol chamado Moisés de León mostrou aos sábios trechos copiados do Zohar original, porém como ele nunca mostrou a ninguém o tal Zohar original, muitos suspeitam que este último seja o verdadeiro autor do “Zohar”, enquanto o primeiro era apenas uma lenda…

Agostinho Junqueira tomou o resto da bebida, convidou a mulher para acompanhá-lo na próxima cerveja e enquanto esperava o garçon trazê-la, teve um pressentimento: do mesmo modo que a luta de Muhamad Ali X George Foreman foi também a batalha de Kursk, o “Zohar” também poderia ser sua vida conjugal; ou seja tal qual esta obra clássica que pode ter sido escrito com base em uma lenda (no caso a existência do rabino Shimon bar Yoachai), ele poderia construir uma vida sentimental consistente (e quem sabe até um lar), usando como base a imagem dele que era fabricada pela imprensa… E quem seria a companheira que iria descobrir este novo homem? Ora, se o “Zohar” era uma alegoria da sua vida sentimental, esta pessoa só poderia ser uma leitora deste livro, no caso a pessoa que agora estava ao seu lado… simples, né?

Após algumas cervejas Agostinho Junqueira, sua nova companheira e o respectivo livro sairam em busca de um novo mundo, no qual parafraseando aquela clássica frase de para-choque de caminhão (**), o nosso protagonista poderá dizer: -”Com as mentiras que falam sobre mim, edificarei algo de verdade.”

(*) A famosa batalha envolvendo alemães e russos foi o maior embate com tanques de guerra da história.

(**) “Com as pedras que me atiram construirei o meu lar”

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O TRIGÉSIMO SEGUNDO METRÔ

No mesmo dia que chegara em Paris, Persius Bonairent resolveu tomar um café na Galerie Vivienne… na verdade um dos motivos da escolha da capital francesa como local de férias era a possibilidade conhecer aquele lendário local, que fora cenário do conto “El Otro Cielo” de Júlio Cortázar. Neste conto, o protagonista viaja de Buenos Aires à Paris (e vice-versa) através da Pasaje Güemes e da Galerie Vivienne, ou seja estas galerias (a primeira situada na capital platina e a segunda na capital francesa) eram portais por onde ele saia de uma cidade e chegava na outra. Persius gostara tanto deste conto que fora mais uma vez à capital platina somente para conhecer a Pasaje Güemes… agora só faltava conhecer a contraparte gaulesa.

Ao chegar na galeria ele sentou-se à mesa do Bistrot Vivienne e depois de olhar a clássica loja de vinhos, Maison Legrand et Fils, que ficava no lado oposto do bistrô, resolveu pedir um “pichet du vin” no lugar do café. Mal começou a bebericar resolveu desenhar o local. Quando acabou o desenho notou que uma velhinho o observara atentamente. Convidou-a para sentar e acompanhá-lo no vinho… começaram a conversar e logo descobriram que ambos eram aficionados em tangos antigos… Então Persius perguntou se o velhinho já lera algo de Júlio Cortázar… o ancião disse que não, que não lera, porém que este nome não lhe era estranho… depois de um tempo perguntou a Persius se este tal de Cortázar era um sujeito alto e barbudo que morara em Paris…

– Este mesmo, por quê, você por acaso conheceu-o? Perguntou o nosso protagonista em seu francês quase sem sotaque.

– Sim… foi uma das poucas pessoas sobre que falei a respeito da trigésima segunda composição do metrô, uma vez que este assunto eu só posso comentar com pessoas que já foram para a capital argentina… Você, embora brasileiro, pelo que conhece de tango, já deve ter estado lá…

– Claro que estive, todo ano sempre dou um jeito de dar uma passada lá, seja para comprar um livro na Calle Corrientes, seja para comer um bife de chorizo…

– Então preste atenção… se você gosta de Buenos Aires, vou lhe dizer algo muito importante… algo que só falo para pessoas especiais… quando você estiver no metrô, não pegue a primeira composição… espere passar trinta e uma vezes e então entre na trigésima segunda composição… mas preste atenção… conte direitinho… a coisa só acontece se você entrar na trigésima segunda vez… você irá ver que acontecerá algo muito inusitado… esta composição do metrô irá levá-lo diretamente a capital platina… Deixe que eu pago o vinho… amanhã me encontre aqui no mesmo horário e me diga o que achou… se puder me traga um CD do Roberto Goyeneche acompanhado de Juanjo Dominguez ao violão…

O nosso protagonista observou o velhinho pagar a conta, se levantar e desaparecer em meio aos corredores da galeria Vivienne.

– Nossa… cada maluco que eu atraio… que velho doido – pensou Pérsius Bonairent.

Porém só de farra ele resolveu entrar no metrô mais próximo, no caso a estação Pyramides (na linha 7) … Eram 14:05 hs quando ele chegou na plataforma na direção Villejuif-Louis Aragón… esperou o metrô passar trinta e uma vezes… na trigésima segunda estanhou que os vagões estavam todos vazios… “Deve ser coincidência”- pensou enquanto entrava no vagão… porém ao chegar na estação seguinte deu-se a revelação: ao invés da estação Palais Royal Musée du Louvre, como seria natural, estava na estação Pueyrredón… era isto… tal qual as galerias do conto de Cortázar a trigésima segunda composição do metrô também era um portal que fazia a comunicação entre as cidades… O nosso protagonista permaneceu no metrô e verificou que a próxima estação era a Palais Royal Musée du Louvre, ou seja estava de volta a Paris… quando ia descer se lembrou do pedido do velhinho: o CD do Roberto Goyeneche acompanhado de Juanjo Dominguez… Permaneceu no metrô e desceu na próxima estação… no caso la estación Aguero…

Lá fora procurou uma casa de câmbio para trocar os euros por pesos… esperava que em Buenos Aires fosse mais cedo, porém descobriu que eram 14:17hs na capital platina: ou seja o fuso horário não existia na transposição destas portas dimensionais… Após conseguir os pesos, foi até uma loja de discos para comprar o regalo para seu novo amigo… saindo da loja, lembrou-se que estava perto do Museu Xul Solar (que fica na Calle Laprida 1212) e resolveu visitá-lo mais uma vez… antes de voltar para Paris comeu um sanduíche de bife a milanesa e bebeu uma gaseosa de pomelo…

II

Devido a recente descoberta, o nosso protagonista passou a ir assiduamente as capitais francesa e platina, pois agora ele só voava e se hospedava em Buenos Aires (o que é muito mais barato), além do fato que não precisava enfrentar horas e horas de avião para cruzar o atlântico… eram só duas horas e meia até o Aeroparque, depois se instalava em algum hotel confortável, ia até a estação de metrô mais próxima, esparava trinta e uma composições passarem e entrava na trigésima segunda e pronto: já estava em Paris!!! Dava até para ir nos feriados…

Mas Persius Bonairent não era um sujeito mal-agradecido não… ele sempre passava na Bistrô Vivienne e ficava esperando o velhinho, quando este chegava o nosso protagonista lhe entregava um pacote com alguns CDs de tangos, depois se sentavam e tomavam um vinho e ficavam a falar sobre a vida… no início deste ano porém o ancião não estava mais lá… justamente quando Persius levara um CD da Jacqueline Sigaut, uma cantora argentina com nome francês que está surgindo agora… O nosso protagonista perguntou pelo velhinho e descobriu que faz tempo que ele não aparecia… – “Será que ele morreu?” – pensou…

Aquilo o abalou profundamente, tanto que ele resolveu pegar o primeiro, (quer dizer o trigésimo segundo) metrô para Buenos Aires e tomar um copetin em um bar que fica em frente a passaje Güemes… Eis que ao chegar lá, adivinhem que ele encontrou??? Ninguém mais, ninguém menos que o velhinho em carne e osso… Este abriu os braços para Persius e após um abraço disse, agora em um espanhol com bastante sotaque:

– Tudo bom? Sabe… vou te confessar uma coisa… quando te contei aquela estória do trigésimo segundo metrô eu estava brincando… mas quando você voltou com o CD do Goyeneche suspeitei que a coisa funcionasse de verdade… depois de um tempo tomei coragem e vim aqui para a Argentina… minha vida melhorou muito… aqui não faz tanto frio… e com aquela aposentadoria miserável que o monsieur Sarkô quer diminuir a todo custo, a vida lá está muito cara… agora não… eu saco o dinheiro em Paris e venho para cá gastar, com o câmbio bem mais favorável… de vez em quando eu volto, para comprar algum livro, uma garrafa de Calvados ou uns queijos, mas no mais a vida aqui é bastante boa, os vinhos são potáveis e a carne aqui é magnífica… e digos mais: já arrumei até uma companheira…

Nisto, o nosso protagonista vê uma senhora (talvez um pouco mais moça do que ele) se aproximar.

– Florinda! Quero te apresentar o meu amigo brasileiro, de quem tanto te falei!!!

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UM POLÊMICO ESCRITOR

Após anos e anos escrevendo, finalmente Lourival Valdomiro passou a ser reconhecido… seus três primeiros romances “Os Curupiras Tecnológicos ” (1992 – Saci Editora, 239 páginas), “Marimbas Autônomas” (1995 – Companhia Editorial Amaralina, 182 páginas), “Taquicardia Diapasônica” (2004 – Edições Pindorama – 271 páginas) não fizeram sucesso, porém “ A Possível História de Pindorama no Século XX” (2009 – Livraria Pajé Editora, 1315 páginas) foi um estouro de vendas e um sucesso de crítica… nesta obra o nosso protagonista relata o que aconteceria no Brasil durante o século retromencionado se quatro personagens da história tivessem tomado decisões diferentes…

Neste livro :

– Henri Matisse não teria desistido de fugir para o nosso país durante a Segunda Grande Guerra (ele chegou a providenciar a papelada, mas mudou de idéia na última hora)…

– Pelé teria disputado a Copa do Mundo em 1974, na Alemanha… o “escrete canarinho” teria despachado a “laranja mecânica” e realizado a mais emocionante final de todos os tempos contra os donos da casa…

– Juscelino Kubitschek teria abandonado a idéia de construir aquela USP gigante e mantido a capital na Cidade Maravilhosa, e esta iria continuar sendo a Cidade Maravilhosa…

– Ary Barroso teria aceitado o convite de Walt Disney para se tornar o diretor musical do estúdio homônimo…

Após discorrer sobre as variantes históricas caso as retromencionadas decisões tivessem sido tomadas, o nosso protagonista chegou a conclusão que o nosso país seria muito melhor, e que o coroamento deste Brasil glorioso seria a premiação de um brasileiro com o Nobel da Literatura… após uma análise macro e micro cosmogônica das perspectivas nacionais, Lourival Valdomiro demonstrou de uma maneira minuciosamente detalhada que este prêmio tão importante teria sido dado a ninguém mais ninguém menos que ele próprio… ou seja se Matisse, Pelé, Juscelino e Ary Barroso, tivessem tomado as decisões “corretas”, ele teria recebido o prêmio máximo da literatura…, logo a sua obra era mais do que suficiente para obtenção de um Nobel, e se este fato não ocorrera, não era por sua culpa…

No início os críticos acharam que aquilo era uma gozação, tanto que Lourival Valdomiro foi convidado para uma mesa-redonda sobre humor e literatura na Flip, em Paraty, porém chegando lá ele, um excelente orador, convenceu os participantes de que não estava brincando… a partir daí a crítica nacional e alguns escritores estrangeiros renomados (que participavam do evento) passaram a defender a outorga do tão famoso prêmio para o protagonista deste mini-conto… Após um curto período, a revindicação chegou na tão famosa academia sueca, sendo que logo foi criado um impasse uma vez que alguns acadêmicos julgavam que a entrega do Nobel para aquele indivíduo era totalmente absurda, uma vez que a sua obra não tinha consistência alguma, que a única coisa que prestava em sua literatura era a teoria que justificava a premiação, e que esta, se ocorresse, seria um enorme disparate… a outra parte dos membros da academia achava justamente o contrário, estes julgavam que a teoria que justificava a entrega do Nobel da Literatura para Lourival Valdomiro era uma parte da obra, na verdade a parte principal, e que os outros livros eram apenas uma preparação para o grande desenlace, e que se isolados não representavam quase nada, vistos em conjunto adquiriam significado; tais livros seriam como os jabs de esquerda do pugilista destro que prepara o potente direto de direita que se dirige certeiro para o queixo do adversário…

Pois bem… após semanas de discussão, quando já estava quase certo que o prêmio seria outorgado ao brasileiro, um velhinho acadêmico (desculpem-me pelo pleonasmo) lembrou seus colegas que se a premiação ocorresse, ela iria liquidar a teoria, pois mesmo com as escolhas “erradas” de Matisse, Pelé, Juscelino e Ary Barroso; Lourival Valdomiro seria premiado… ou seja, ele seria premiado de qualquer jeito: se Matisse viesse ou não morar em Pindorama, se Pelé disputasse o não a Copa de 74, e assim por diante… logo sua ilustre tese iria se mostrar inócua…

Eles já estavam decididos a entregar o Nobel para um escritor Indonésio (filho de pai húngaro e mãe guatemalteca) quando um outro acadêmico (ainda mais velhinho que o primeiro) lembrou que a Academia deveria ser livre e que a escolha deles teria que ser sempre independente… logo seria um absurdo ainda maior não entregar o Nobel a Lourival Valdomiro só para não contrariar a sua teoria…

Os outros velhinhos após uma certa hesitação acabaram concordando e desta forma finalmente um brasileiro, (nascido em Trabiju, perto da Araraquara) ganhou o Nobel de Literatura…

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O PEDINTE

Antigamente aquilo era chamado de estafa, depois com a mania das pessoas usarem termos anglo-saxônicos passou a ser chamado de stress… pois bem, não importa a palavra, mas aquilo estava transformando Estanislau Laurindo em uma pessoa diferente… antes ele era uma pessoa afável, bem humorada, que se interessava em ver novas coisas, que prestava atenção em cada detalhe… com o tempo passou a ostentar um ar blasé, tudo o irritava e nada mais despertava a sua atenção… nem mesmo o contato com sua esposa e sua filha fazia com que não se irritasse com as coisas mais ínfimas…

As coisas mais complicadas, como dirigir no trânsito absurdo, ir ao hipermercado, falar com estas garotas de telemarketing (do tipo “vamos estar agendando”) então nem pensar… delegava tudo para sua mulher.

Um dia caminhando na hora do almoço, pelo viaduto Tutóia, ouviu um mendigo a cantar:

“Não fala com pobre, não dá mão a preto não carrega embrulho pra quê tanta pose, doutor pra quê esse orgulho”

O primeiro pensamento que surgiu na mente doentia de nosso protagonista foi espancar o pobre coitado, uma vez que achou que o pedinte estava gozando da cara dele, porém ele percebeu que conhecia esta música e ficou tentando se lembrar qual era o nome da canção e quem era o autor… a única coisa que se recordava era que a música tinha sido gravada por Isaurinha Garcia…A noite foi procurar na sua coleção de discos de vinil, nesta altura um tanto esquecida, e por fim verificou que era o samba “A Banca do Distinto”, composta por Billy Blanco.

No dia seguinte, avistando o mendigo no mesmo lugar, aproximo-se e após um sorriso um tanto quanto sem graça, deu a ele uma moeda… o pedinte olhou-o no fundo dos olhos e sorriu agradecido com seus poucos dentes encardidos e seus lábios um tanto quanto moles e cheios de saliva…

A partir daquele gesto, Estanislau Laurindo passou a dar esmolas diariamente ao sujeito e paralelamente começou a recuperar a alegria de viver: limpou sua coleção de vinis com uma flanela embebida em sabão de côco, passou-os a escutar sambas antigos todas as noites, voltou a tomar as suas tacinhas de vinho, passou a se preocupar menos com o trabalho, voltou a fazer exercícios, etc… Porém um dia sua filha adoeçeu… um problema seríssimo fez com que ela fosse internada no Hospital do Coração… O nosso protagonista prometeu então que iria mandar rezar uma missa se ela recuperasse a saúde, e que a igreja escolhida seria a do Santíssimo Sacramento, junto ao viaduto Tutóia, ao lado do local em que o mendigo fazia ponto… (para dar sorte, pensou).

Foi só prometer que ela se reestabeleceu de imediato…

Promessa é dívida… então o nosso protagonista mandou rezar a missa conforme combinado com o Todo Poderoso… minutos antes da celebração o padre pediu que ele fizesse o ofertório… Estanislau Laurindo a princípio não quis aceitar o convite, pois como não era católico praticante não conhecia direito este negócio de ficar passando a sacolinha a pedir donativos… porém como sua esposa e sua filha pediram para que aceitasse, ele ficou sem jeito e topou a parada.

Na hora do ofertório o nosso amigo pegou o saco de pano vermelho e saiu à luta… no princípio estava tímido, mas depois foi se soltando… de repente a surpresa: adivinhem quem estava em um dos últimos bancos???

Ninguém mais, ninguém menos do que “o pedinte”, com seu terno encardido marrom, seu chapéu da mesma cor, seu colete verde-musgo e seu sobretudo cinza… Diante da surpreendente visão, Estanislau Laurindo viu-se em um terrível dilema: pedir ou não pedir donativos ao mendigo??? a primeira hipótese pareceu absurda: como ele, um empresário, iria pedir esmolas a um indigente??? mas também não pedir poderia ser ofensivo, poderia parecer discriminação… na hora hagá ele estendeu a sacolinha e para a surpresa geral o pedinte repetiu aquele sorriso encardido e cheio de saliva e tirou uma porção de moedas do bolso, enchendo o saco (desculpe-me pelo trocadilho) do ofertório…

Se antes daquele gesto o nosso protagonista estava começando a deixar de ser um morto-vivo, a partir daquele instante o seu processo da transformação sofreu uma intensa catalização: ele percebeu a futilidade, a imbecilidade, a hipocrisia,a avareza, enfim a pequenez que nos envolve… percebeu então que estava diante do rei e rodeado de mendigos!!!

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O FILÓSOFO-MESTRE

O professor distraiu-se por um momento e ficou pensando na paisagem da rodovia Rio-Santos, no trecho entre Ubatuba e Parati… depois fez uma comparação (um tanto sem sentido) com a rodovia que liga Purmamarca a San Pedro do Atacama em que a divisa da Argentina com o Chile está a cerca de 5.000 metros de altitude… de repente a pergunta de um aluno:

– Professor, o que o senhor com sua vasta experiência, tanto na filosofia como na vida, pensa sobre os times de futebol do interior que estão trocando de nome e de cidade??? Não seria, sob o ponto de vista da filosofia pré-socrática, uma vitória de Heráclito sobre Parmênides???

O professor sentiu uma certa ironia na pergunta… pensou que os alunos apostavam que ele não sabia que o Guaratinguetá Futebol Ltda recentemente se transformara em Americana Futebol Clube Ltda, saindo do Vale do Paraíba e se transferindo para a região metropolitana de Campinas, e também que ele desconhecia o fato do Grêmio Esportivo Barueri ter se transformado em Grêmio Prudente Futebol Ltda. (desta vez foi só seguir as Rodovias Castello Branco e Raposo Tavares até o fim)… pensou também que o aluno arrogantezinho estava se sentindo inteligente no meio dos colegas porque fazia um paralelo da situação destes times que mudam de cidade com a filosofia de Heráclito, que declara que tudo muda, que as coisas fluem, filosofia esta que é antagonizada pela filosofia de Parmênides que afirma que nada muda. Por isto a “vitória de Heráclito sobre Parmênides”.

O professor olhou seus alunos demonstrando calma e segurança, sorriu levemente e por fim disse:

– Se vocês gostam tanto de filósofos pré-socráticos leiam Demócrito de Abdera, que afirrma que o riso torna o homem sábio…Quanto a estes times de futebol que mudam de cidade e de nome, afirmo que em primeiro lugar, sob o ponto de vista futebolístico é uma grande sacanagem com as divisões inferiores… quem estava classificado para a primeira divisão do Campeonato Paulista era o Guaratinguetá, se eles resolveram mudar para Americana que voltem disputando a Terceira Divisão. Em segundo, sob o ponto de vista sociológico é uma forma de tirar a identidade dos habitantes das cidades do interior: o morador de Presidente Prudente deve torcer pela Prudentina, o torcedor de Americana deve torcer pelo Rio Branco, e não para estes times inventados pelos empresários que não tem raízes nas cidades. Em terceiro lugar, agora sob o ponto de vista filosófico, penso que o caso destes times devem ser analisados pela ótica da teoria da hiper-realidade e da teoria do simulacro de Jean Baudrillard… Agora, sinceramente, acho que vocês deveriam parar de se preocupar com tais besteiras e ouvir mais as pessoas simples… parem, conversem, perguntem, percebam como estas pessoas vivem, como preparam a sua comida, como se divertem, ouçam sobre como são os sonhos destas pessoas… percebam como está o mundo em sua volta… joguem fora estes micro-walkmans que vocês chamam de i-phones e liguem o rádio… isto mesmo… o rádio de pilha… eu sempre ando com um radinho, ouçam…

O professor então ligou seu rádio de pilha (que sempre permanecera desligado sobre a sua mesa), o aparelho estava sintonizada em sua estação predileta… estava tocando “Estácio, Holly Estácio” na gravação original. A voz de Luiz Melodia anunciava:

“O Estácio acalma o sentido dos erros que eu faço
Trago não traço, faço não caço
O amor da morena maldita do Largo do Estácio”

– Vejam esta frase… poeticamente perfeita… ouçam o arranjo de bolero… percebam o solo de gaita de Rildo Hora… Esta é que é a verdadeira filosofia!!!

E então os alunos ouviram o resto da canção e compreenderam…

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A PALAVRA

Paulo Álvares Parolli estava em crise… Poeta intuitivo, alcançara a celebridade com dezessete anos ao publicar seu livro “O Martelar Sintáxico”… Na verdade tudo fora sem querer, em um estilo composto de frases desconexas porém rimadas (escritas a esmo), salpicadas por algumas palavras “difíceis” (como “semiótica”, “significante”, “léxico”, etc) ele fez um sucesso estrondoso em sua estréia… Publicou ainda mais três livros: “Morfologia Dormitante”, “Mobilidade Líqüida” e “Emoções Binárias”… porém, toda a vez que tinha que dar entrevistas era aquela insegurança, uma vez que ele não lera muito e temia dar alguma opiniâo equivocada.

Com o passar do tempo o nosso protagonista resolveu se instruir… leu vários poetas, mas ficou impressionado mesmo foi com as duas primeiras frases do poema “Literato Cantabile” de Torquato Neto:

“agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada”

Procurando entender o significado desta frase passou a se aprofundar nos estudos literários, e só achou a resposta ao ler “Que É a Literatura?” de Jean-Paul Satre… Neste livro o escritor francês afirma que o poeta não vê a palavra como um signo de um aspecto do mundo, mas como a imagem deste aspecto. Ou seja, a palavra, na poesia, não é um meio de significar uma idéia (como funciona na prosa), mas é o ícone desta mesma idéia. Seu aspecto visual, sua sonoridade sua extensão antes representam do que expressam o significado… daí a serem armadilhas… ciladas…

Aquela revelação transtornou Paulo Álvares Parolli … se as palavras que ele escrevia em seus poemas não eram o significado de sua expressão artísticas mas a sua imagem, onde estaria o sentido pleno da palavra??? Em que lugar ???

Uma noite o nosso protagonista sonhou com o bondinho de Santa Teresa… naquele letreiro que tem em cima da cabine do motorneiro, que diz o destino do bonde, estava escrito o seguinte topônimo: PALAVRA

No dia seguinte ele foi para a Cidade Maravilhosa e se hospedou no bairro de Santa Teresa, porém passada uma semana vasculhando o bairro, não encontrou nenhum indício do significado pleno da palavra… já estava desanimado achando que aquele sonho fora uma besteira e para não perder a viagem resolveu comer uma feijoada no famoso “Bar do Mineiro”… entrou lá, porém o local estava cheio, mas conseguiu a única mesa que restava… pediu uma feijoada e uma cerveja e enquanto esperava o garçom trazer a bebida notou que um monge entrara no bar… o religioso, já bastante idoso, procurava um lugar em vão… Paulo Álvares Parolli então resolveu fazer uma boa ação e perguntou ao monge se ele não queria se sentar em sua mesa…

O monge apesar da idade, era bom de copo e acompanhou o nosso protagonista na cerveja… quando questionado sobre o fato, o religioso respondeu:

– “Pecado é tomar bebida light, pois a LUZ verdadeira não está dentro de uma garrafa de refrigerante.”

– “E a PALAVRA verdadeira onde está???” perguntou o nosso protagonista.

– “A PALAVRA verdadeira está no centro geométrico do coração de cada indivíduo”.

– “Ora, esta resposta é muito vaga… e o sentido pleno da palavra??? Onde ele está??? Onde eu posso encontrá-lo???” O monge tomou um longo gole, sorriu de satisfação e disse calmamente:

– “Veja bem… uma coisa é uma coisa… outra coisa é outra coisa… a PALAVRA é uma coisa, enquanto que seu sentido pleno é outra coisa… há muito tempo um dos monges da minha ordem, um franciscano, deixou cravada em um dos muros de uma fortaleza, uma inscrição em latim… diz a tradição que aquele que conseguir ler a inscrição saberá definitivamente o sentido da palavra e poderá então compreender qualquer coisa escrita na sua totalidade… Este forte está situado no litoral uruguaio e fora visitado pelo tal monge a convite de José Gervasio Artigas, um político e militar uruguaio, antes que Manuel Marques de Sousa retomasse o forte para os portugueses em 1816 na campanha que Dom João XVI empreendera para construir a província Cisplatina…

– “Qual o nome desta fortaleza???”

– “O mesmo deste bairro: Santa Teresa!!!”.

Paulo Álvares Parolli percebeu que o sonho era profético… levantou-se imediatamente, acertou a conta (deixando mais duas cervejas pagas para o monge) e saiu apressado. No albergue apanhou sua mochila, passou em um sebo onde comprou uma gramática de latim… e pé na estrada…

Dizem que agora ele já cruzou a fronteira e já está na Carretera 9, a poucos quilômetros do Forte de Santa Teresa… talvez não encontre a inscrição… mas já pensou em deixar a poesia de lado por um tempo e escrever um romance autobiográfico que se chamará “De Santa Teresa à Santa Teresa”.

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O PRÉDIO

Desde pequeno Joelmo Vespasiano era apaixonado pelo plastomodelismo, ou seja adorava montar aqueles aviões, navios, tanques de guerra, carros, todos de plástico… depois pintava-os cuidadosamente, colava os decalques e os exibia nas prateleiras do alpendre no quintal da casa de seus pais em Moema… Quando foi estudar arquitetura, sua habilidade com aviõezinhos de montar fez com que fizesse as mais bonitas maquetes da faculdade… passou a ser requisitado para fazer maquetes para os escritórios dos professores e após a formatura abriu uma micro-empresa especializada no assunto… em pouco tempo a micro-empresa prosperou e ele passou a atender as grandes construtoras.

Em uma tarde morna de terça-feira o nosso protagonista recebeu a notícia que asua tia-avó Lalitas havia falecido… imediatamente ele se lembrou dos almoços na infância na casa da tia querida no bairro da Vila Mariana, onde costumava brincar com seus primos e primas no jardim junto ao tamarindeiro naquelas tardes quentes e perfumadas em que o sol entorpecia os sentidos com a suas radiações voluptosas… No velório começaram os boatos: a casa seria vendida…

Passados alguns meses ele recebeu a encomenda de uma construtora para executar uma maquete de um grande lançamento que iria ocorrer justamente na rua em que a sua tia Lalitas morava… ficou desconfiado e foi até o local averiguar: o prédio seria construído justamente onde era a casa de sua tia-avó e o pior: o tamarindeiro fora cortado!!!

Joelmo então começou a caminhar a esmo em meio a aquele bairro onde as residências estavam sendo esmagadas por aquele monte de prédios horrorosos: prédios chanfrados, prédios mediterrâneos, prédios revestidos com pastilhas, e o pior: prédios naquele estilo que Darcy Ribeiro denominou “Geisel-Funerário” (“Geisel” devido ao vidro fumê que lembrava os óculos escuros de nosso ex-presidente e “Funerário” devido ao mármore que revestia aqueles edifícios). Imediatamente quis recusar o serviço, mas lembrou-se que precisava pagar a prestação do apartamento onde morava, por sinal da mesma construtora que havia assassinado o pobre tamarindeiro… Parou então em um boteco, pediu uma cerveja e começou a pensar na vida… percebeu que no começo achava ótimo o que fazia, mas agora percebera que era apenas um joguete na mão das construtoras, que também graças as suas maquetes, apartamentos eram vendidos, mas para que isso ocorresse, casas eram demolidas, bairros eram degradados e jaqueiras, cajueiros, jabuticabeiras, limoeiros, mangueiras, seringueiras, ipês roxos, ipês amarelos, ipês brancos, enfim muitas e muitas árvores eram arrancadas!!!

Na véspera do lançamento o nosso protagonista entregou a maquete, por sinal feita com o maior capricho… porém no dia seguinte em meio ao coquetel reunindo corretores de um lado e novos-ricos do outro lado, Joelmo apareceu embriagado (de batida de tamarindo com gin) e fantasiado de romano, mais precisamente de Nero… antes que os seguranças pusessem impedi-lo, ateou fogo à maquete enquanto tocava harpa e cantava canções obscenas…

Nunca mais encomendaram suas maquetes, porém a performance virou notícia mundial e hoje Joelmo Vespasiano faz performances semelhantes na principais mostras de artes plásticas do planeta. Ainda mora em São Paulo, mas passou para frente o apartamento financiado e com o dinheiro que ganhou na Documenta de Kassel comprou uma casa antiga no bairro do Ipiranga onde seus filhos e sobrinhos brincam a sombra de bananeiras, laranjeiras e pés-de amora.

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COMEMORAÇÕES SUBMERSAS

Nosso protagonista estava muito tempo sem conversar com seus colegas de faculdade, um grupo que tinha pretensões artísticas nos anos 80 e que depois se desfez, pois seus membros se enveredaram pelos mais diversos ramos profissionais… mas resolveu fazer um encontro artístico em que em meio a cervejas e acepipes, elas discutissem assuntos referentes a arte. Na noite combinada seus amigos foram chegando… Hildon Marlos Risério, Sancho Ruiz Maldini, Fúlvio Dicaravaggio e Sávio Cacciaccinni… cerveja puro malte, pão, um bom azeite e jamón serrano, conversas e mais conversas… quando perguntado sobre o que achara da Bienal de São Paulo 2010, o nosso protagonista dizia que não tinha nenhuma opinião sobre o episódio dos urubus, nem opinião sobre as obras expostas, a única coisa que importara para ele, era que mais uma vez não tinha sido convidado a mostrar suas pinturas… “mais uma Bienal em que eu não participo”… resmungava secamente, querendo disfarçar uma certa lamúria em sua voz…

Porém antes que qualquer de seus amigos se pronunciasse o nosso protagonista lançou um olhar desafiador para os presentes e emendou:

– Vou participar da próxima Bienal, mas com outro nome… irei inventar um personagem fictício e um motivo bem boçal, algo bem estúpido… aí é só fazer um bom trabalho de marketing que a coisa pega…

– Então já defina o personagem fictício e também o motivo boçal. Disse Sancho Ruiz Maldini.

Após alguns instantes o nosso protagonista respondeu:

– Vou me apresentar como Osmar Mungano.

– E o tema? Qual será o tema? Perguntou desta vez Hildon Marlos Risério.

O nosso protagonista não sabia o que dizer, porém no fim de semana anterior seu time havia ganho na prorrogação um jogo disputadíssimo sobre um time cujos jogadores eram conhecidos por suas peculiares dançinhas nos momentos de comemoração de gols… pensou nas dançinhas… em como aquilo o irritava profundamente… os passinhos… a alegria boçal… os trejeitos rebolativos… “Ah queria ver eles comemorando em baixo d´água… “ pensou novamente, mas então seu olhar foi iluminado por uma luz interna pois ele percebeu que tinha resolvido a questão: iria pintar imagens de jogadores comemorando gol em um ambiente de fundo do mar. Ele então sorriu baixinho e disse:

– Só vou dizer o nome, vai se chamar COMEMORAÇÕES SUBMERSAS, depois vocês verão o resto… quem quer outra cerveja?

Anos depois nosso protagonista, ou melhor Osmar Mungano, estreou na Bienal: era uma série de quadros no estilo pop-art com imagens de comemorações de gols famosos (Pelé, Serginho Chulapa, etc) em ambiente submerso envolto em peixes e plantas marinhas… mas o que impressionou os críticos foi que ao lado das telas havia um mural com a TEORIA DA SEMI-OBRA DE ARTE: Um emaranhado crítico, uma mistura da teoria do não-lugar de Baudrillard com conceitos desconstrutivistas de Derrida, na qual se explicava que em meio a uma realidade estrutural em processo de mudanças contínuas, um ser-e-não-ser da vida cotidiana, a aparição de imagens representando as comemorações de gols submersas criaria o semi-lugar: um lugar ao mesmo tempo SEMIótico e inserido na significação semântica de um mundo em que semi-jóias e carros semi-novos eram vistos como coisas normais…

Um sucesso … a partir daí o nosso protagonista se esqueceu de si mesmo e passou a acreditar que era Osmar Mungano, e passou a evitar os antigos amigos usando como pretexto o fato de um deles ter dito que aquele pop-art futebolístico era uma imitação dos quadros que Maurício Nogueira Lima havia feito no final dos anos sessenta… passou também a se vestir diferente, comprou um par de óculos com aro grosso e passou a só frequentar bares e restaurantes da moda… porém com o passar do tempo começou a se cansar do personagem… retirou todos os espelhos de sua casa.. mas não adiantou… sempre que saía de casa via sua imagem refletida em algum lugar… não podia mais suportar a visão daquele espectro, não suportava mais ver-se vestido de adolescente intelectualizado.

Um dia o nosso protagonista foi a antiga ótica e encomendou um par de óculos da aro fino, três dias depois, quando os novos óculos ficaram prontos, ele saiu da ótica e após alguns passos jogou os óculos de aro grosso no chão e pisoteou-os esmagando-os completamente… e pensou: – Chega desta visão de mundo babaca, chega, chega de palhaçada!!! … então colocou os novos óculos e saiu assobiando…. a partir daí Osmar Mungano desapareceu completamente, como um cometa que aparece e some, ele deixou o ambiente artístico de repente… ninguém mais teve notícias dele… O nosso protagonista, por outro lado, voltou a antiga vida, se reconciliou com os amigos e hoje gargalha com esta estória, e toda vez que se encontra com algum de seus antigos amigos diz:

– Fique tranquilo: não vou convidar o Osmar Mungano…

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O ESPELHO

Joelma Valdomira possuia todos os atributos femininos, exceto um… ela não gostava de se olhar no espelho… apesar de sua vaidade e do seu extremo bom gosto ao se maquiar, o ato matinal de se arrumar diante do espelho era um enorme martírio… e sabem por quê??? É que depois dela ter lido aquele texto denominado “Animais dos Espelhos”, que Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero incluíram em “O Livro dos Seres Imaginários”, ela se arrepiava toda quando tinha que encarar sua imagem refletida no espelho do banheiro… O texto conta a estória de uma época em que o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam incomunicáveis, além disso eram mundos bastante diferentes; até que um dia em que o pessoal do mundo dos espelhos resolveu invadir o nosso mundo… após terríveis batalhas o Imperador Amarelo rechaçou os invasores, encarcerou-os no outro lado e como penalidade privou-os de suas figuras e os obrigou a repetir todos os gestos dos homens… um dia virá em que as criaturas dos espelhos deixarão de nos imitar e iniciarão uma nova revolução…

Como a nossa protagonista ficara muito impressionada com esta leitura, ela morria de medo de que algum dia sua imagem parasse de imitá-la… seria o início do caos…

Passado o tormento matinal, ela tomava seu café da manhã, este por sinal sempre requintado (suco de grapefruit, melão cortado em cubos com presunto crú, pão caseiro e chá inglês com uma rodela de limão siciliano), e depois rumava para o escritório onde tormentos menores a esperavam… Ela trabalhava em uma firma que gerenciava estacionamentos… logo ela que se formara psicanalista, logo ela que lera a obra de Lacan em francês, logo ela que sempre sonhou com ambientes mais requintados… porém alguma coisa em seu destino a empurrava para o ralo… e não era só no emprego não… seu noivo, por exemplo era um perfeito boçal: Domênico Dagobertini, gerente de uma concessionária de veículos, um sujeito falante, na verdade falante até demais, que se enturma com qualquer um após cinco minutos de conversa, que apesar da falta de leitura e do português ruim, possui um raciocínio rápido (principalmente no que tange a trocadilhos sexuais), que conversa sobre todos os assuntos, e é capaz de conceber as teorias mais absurdas… Uma delas, foi a teoria que bolou para provar para sua noiva que para ela o oficio de gerenciamento de estacionamentos era muito mais honesto do que a prática da psicanálise: pois ninguém muda de verdade, então o cara paga uma fortuna fazendo análise por anos a fio e no fim das contas é o mesmo sujeito, ou seja o cliente paga por uma mudança que na verdade nunca ocorre, enquanto que com o estacionamento se dá exatamente o contrário: o cara paga para que o carro fique da mesma maneira como está, sem riscos na pintura, sem roubo do som, sem pneus furados, etc. e quando o cliente volta para o estacionamento o carro está do mesmo jeito: logo um dono de estacionamento é muito mais honesto que um psicanalista, pois um promete que não haverá mudanças com o carro do cliente e cumpre, enquanto que o outro promete uma mudança que nunca ocorre…

É um tremendo mistério como Joelma Valdomira foi ficar noiva de um sujeito como este, mas ela começou a se cansar… um dia se cansou dele, do emprego, de sua falta de coragem, da rotina, de tudo…

Não foi trabalhar, passou a tarde passeando, entrou em uma livraria e viu um rapaz bastante atraente se aproximar perguntando se não tinha “O Livro dos Seres Imaginários” de Jorge Luís Borges e Margarita Guerrero… ela ficou muda…

– Desculpe-me, achei que você fosse vendedora…

– Não faz mal, eu te ajudo a procurar…

E assim começou uma conversa que terminou com a tradicional troca de telefones…

A noite deu uma desculpa qualquer para Domênico Dagobertini, e ficou sozinha em seu apartamento. Preparou um “fettuccine a alfredo”, que comeu degustando duas taças de vinho syrah… foi dormir cedo.

Sonhou que passeava pelo centro de São Paulo com o rapaz da livraria, depois de percorrer vários locais eles entraram no Bar do Léo na Rua Aurora, lá dentro tudo estava diferente, era muito maior, as cortinas eram de veludo grená, os lustres eram de cristal, ao fundo se ouvia um tango, se sentaram em uma mesa, de repente quem estava em sua frente não era mais o rapaz da livraria, mas Jorge Luis Borges em pessoa… olhou para mesa e reparou que no guardanapo de papel estava escrito “Café Tortoni.”.. então Borges explicou a ela que “aquele texto, “Animais dos Espelhos”, era uma metáfora; na verdade, os seres que estão detrás dos espelhos somos nós… somos nós que estamos condenados a imitar nossas projeções sociais, a repetir este teatro cotidiano que se chama sociedade… somente quando pararmos de imitarmos a nós mesmos, (ou aquilo que acreditamos que sejam nós mesmos) é que seremos realmente livres…”

Então Joelma Valdomira acordou e soltou uma sonora gargalhada!!!

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