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A citação de hoje é um trecho de “Petesburgo” de Andrei Bieli ( editora Ars Poetica ) , livro que o escritor Nabokov considerava “uma das quatro obras primas da prosa no século XX” , junto com “Ulisses” de James Joyce , “Metamorfose”de Franz Kafka e “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust. Uma pequena explicação : Nevski e Neva são respectivamente a avenida principal e o rio que banha São Petesburgo .

“Todos os ombros formavam um sedimento viscoso e mole. O ombro de Alexander Ivanovich grudou-se no sedimento e foi, por assim dizer, sugado. Tentando manter-se de acordo com as leis da integridade orgânica do corpo, ele seguiu o ombro e foi assim vomitado na Nevski.

O que é um grão de caviar?

Lá, o corpo de cada indivíduo que desliza no calçamento torna-se o grão de um corpo geral, um grão individual de caviar, e as calçadas da Nevski são a superfície de um sanduíche aberto. O pensamento individual foi sugado para dentro da cerebração da miriápode que se movia ao longo da Nevski. (…) O segmento pegajoso se compunha de segmentos individuais; e cada segmento individual era um dorso.

Não havia pessoas na Nevski, mas sim uma miriápode que aí rastejava e uivava. O espaço úmido derramava uma multi-distinção de vozes numa multi-distinção de palavras. Todas as palavras se misturavam e se teciam numa sentença; e a sentença parecia não ter sentido. Pairava acima da Nevski uma negra neblina de fantamasgoria.

E, inchado por aquela fantamasgoria, o Neva rugia e se agitava entre suas margens maciças de granito.”

( Andrei Bieli )

Outro dia , dirigindo pelas ruas paulistanas , cheguei na esquina da R. Paulo Sérgio de Macedo com a R. Waldir Azevedo … Para quem não sabe , o primeiro foi compositor e intérprete da Jovem Guarda e de músicas cafonas dos anos setenta ( “Eu te amo , eu te venero” , “Quero ver você feliz”, etc. ) enquanto que o segundo , tocava cavaquinho e compunha chorinhos ( “Brasileirinho” , “Pedacinhos de céu”, etc. ) … só a mente bizarra destas pessoas que dão nome às ruas , poderia conceber tal encontro absurdo … Aí fiquei pensando outras barbaridades existentes : R. Antoni Gaudi travessa da Av. Carlos Lacerda , Paul Valéry esquina com a R. Booker Pitmann … e por aí vai …

Citação do dia :

“As únicas coisas eternas são as nuvens …”

( Mário Quintana )

Citação do dia :

“Vocês acreditam num edifício de cristal indestrutível por todos os séculos, um edifício tal qual não se poderá mostrar a língua, às escondidas, nem fazer figa dentro do bolso. Eu temo este edifício justamente porque é de cristal e indestrutível por todos os séculos, e por não se poder mostrar a língua, nem mesmo às escondidas .”

( comentário de Fiodor Dostoievski sobre o Palácio de Cristal projetado por Joseph Paxton)

Citação do dia :

“… a calçada desapareceu-lhe sob os pés, as carruagens e os cavalos que galopavam pareciam imóveis , a ponte se alongou e se rompeu no meio do arco que descrevia , a casa virou de cabeça para baixo , a guarita tombou em sua direção e a alabarda da sentinela , juntamente com as letras douradas do letreiro da loja e a tesoura nele pintada , pareciam brilhar-lhe nos cílios .”

( Nikolai Gogol )

ZENSIDER

Outro dia o nosso cinema perdeu o nosso maior vilão ( José Lewgoy ) , anteontem foi a vez de uns dos últimos galãs : Cyl Farney … logo mais só teremos vilões barangões e galãs baranguinhos …

Citação do dia :

“Culpa é o preço que pagamos de bom grado para fazer o que iríamos fazer de qualquer jeito.”

( Isabelle Holland )

Nunca pensei na relação entre arte e engenharia de tráfego , mas lendo um ensaio de Marshall Berman sobre Charles Baudelaire , descobri que não só existem afinidades , como que o trânsito caótico de nossos dias é o reflexos da atual estrutura social …

Leiam primeiro Baudelaire ;

“PERDA DE AURÉOLA

– MAS O QUÊ? você por aqui meu caro? você em tão mau lugar! você o bebedor de quintessências! você o comedor de ambrosia! Francamente é de surpreender.

– Meu caro, você bem que conhece o meu pavor dos cavalos e das carruagens. Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desgradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos redentados. De resto, disse com meus botões, há males que vem para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como está vendo!

– Você deveria ao menos por um anúncio, ou comunicar a perda ao comissário.

– Ah! não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás a dignidade me entedia. Depois alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X., ou no Z.! Hein! como será engraçado!”

( Charles Baudelaire – Tradução Aurélio Buarque de Holanda Ferreira )

Vejam agora o comentário de Marshall Berman ;

“O homem moderno arquetípico, como vemos aqui é o pedestre lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem sozinho, lutando contra um aglomerado de massa e energia pesadas, velozes e mortíferas. O borbulhante tráfego da rua e do bulevar não conhece fronteiras espaciais ou temporais, espalha-se na direção de qualquer espaço urbano, impõe seu ritmo ao tempo de todas as pessoas, transforma todo o ambiente moderno em caos. O caos aqui não se refere apenas ao passantes – cavalheiros ou condutores, cada qual procurando abrir o caminho mais eficiente para si mesmo – mas a sua interação, à totalidade dos movimentos no espaço comum. Isso faz do bulevar um perfeito símbolo das contadições internas do capitalismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada que conduz a irracionalidade anárquica do sistema social que mantám agregadas todas essas unidades.

(…)

Mas, quando deixa seu halo cair e continua andando, o poeta Baudelaire realiza uma grande descoberta. Descobre para seu espanto que a aura de pureza e santidade artística é apenas incidental e não essencial à arte e que a poesia pode florescer perfeitamente, talvez melhor ainda, no outro lado do bulevar, naqueles lugares baixos. ‘apoéticos’ , como o mauvais lieu onde esse mesmo poema nasceu. Um dos paradoxos da modernidade, como Baudelaire vê aqui, é que seus poetas se tornarão mais profunda e autênticamente poéticos quanto mais se tornarem homens comuns. Lançando-se no caos da vida cotidiana do mundo moderno – uma vida de que o novo tráfego é o símbolo primordial – o poeta pode apropriar-se dessa vida para a arte.”

( Marshall Berman )

Citação do dia :

subsenhor Bicho vermelho aguarda ônibus amarelo sempre

vindo verd’azulado pelas sobrancelhas cinzentas d’Avenida

Santo Amaro Laço erodido rio cromado campo polido neste

estojo gasoso A impossibilidade de transfl*rmar esta

mesa opaca em árvore Reflete frio olhar transcristalino mármore

sem dentes no trecho inexato onde fora de uso

e de eixo lavoura de loucos sacerdotes pássaro reluzo

( Arnaldo Xavier )