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Nunca pensei na relação entre arte e engenharia de tráfego , mas lendo um ensaio de Marshall Berman sobre Charles Baudelaire , descobri que não só existem afinidades , como que o trânsito caótico de nossos dias é o reflexos da atual estrutura social …

Leiam primeiro Baudelaire ;

“PERDA DE AURÉOLA

– MAS O QUÊ? você por aqui meu caro? você em tão mau lugar! você o bebedor de quintessências! você o comedor de ambrosia! Francamente é de surpreender.

– Meu caro, você bem que conhece o meu pavor dos cavalos e das carruagens. Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola, num movimento precipitado, escorregou-me da cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desgradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos redentados. De resto, disse com meus botões, há males que vem para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como está vendo!

– Você deveria ao menos por um anúncio, ou comunicar a perda ao comissário.

– Ah! não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás a dignidade me entedia. Depois alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X., ou no Z.! Hein! como será engraçado!”

( Charles Baudelaire – Tradução Aurélio Buarque de Holanda Ferreira )

Vejam agora o comentário de Marshall Berman ;

“O homem moderno arquetípico, como vemos aqui é o pedestre lançado no turbilhão do tráfego da cidade moderna, um homem sozinho, lutando contra um aglomerado de massa e energia pesadas, velozes e mortíferas. O borbulhante tráfego da rua e do bulevar não conhece fronteiras espaciais ou temporais, espalha-se na direção de qualquer espaço urbano, impõe seu ritmo ao tempo de todas as pessoas, transforma todo o ambiente moderno em caos. O caos aqui não se refere apenas ao passantes – cavalheiros ou condutores, cada qual procurando abrir o caminho mais eficiente para si mesmo – mas a sua interação, à totalidade dos movimentos no espaço comum. Isso faz do bulevar um perfeito símbolo das contadições internas do capitalismo: racionalidade em cada unidade capitalista individualizada que conduz a irracionalidade anárquica do sistema social que mantám agregadas todas essas unidades.

(…)

Mas, quando deixa seu halo cair e continua andando, o poeta Baudelaire realiza uma grande descoberta. Descobre para seu espanto que a aura de pureza e santidade artística é apenas incidental e não essencial à arte e que a poesia pode florescer perfeitamente, talvez melhor ainda, no outro lado do bulevar, naqueles lugares baixos. ‘apoéticos’ , como o mauvais lieu onde esse mesmo poema nasceu. Um dos paradoxos da modernidade, como Baudelaire vê aqui, é que seus poetas se tornarão mais profunda e autênticamente poéticos quanto mais se tornarem homens comuns. Lançando-se no caos da vida cotidiana do mundo moderno – uma vida de que o novo tráfego é o símbolo primordial – o poeta pode apropriar-se dessa vida para a arte.”

( Marshall Berman )

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