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{ Monthly Archives } junho 2004

Citação do dia :

O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anônimo e frio,

A vida vivida em vão.

A ‘sp’rança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobre mais que minha ‘s’prança,

Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam – verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha:

Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só lembranças –

Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim –

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser – muro

Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me

Para o alvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.

( Fernando Pessoa )

SOBRE LEITURAS

Continuo a ler Finnegans Wake e percebo cada vez mais que tenho que olhar no texto original para entender a ( brilhante ) tradução de Donaldo Schüler . Por exemplo , para entender o que quer dizer : com a capra às custas , temos que ver o original : carryin a overgoat under his schulder … aí percebemos que capra é a junção de capa ( coat ) com cabra ( goat ) … lembremos que overcoat significa “sobretudo” ( substantivo ) . Quanto a schulder temos shoulder ( costas ) e shuld ( culpa em alemão ) , o que dá numa junção de costas + culpa = custas . A frase significa então : com a capa de cabra , nas costas culpadas .

Leiamos as considerações do tradutor :

“Um dos primeiros ensaios da iconografia cristã mostra Cristo com o cordeiro às costas. Provido de uma capa de cabra, o jovem se cristifica. Como tal ele reflete a imagem do bode expiatório, o que lhe dá características divinas.”

( Donaldo Schüler )

CONTIGO EN LA DISTANCIA

Ganhei de meus pais , os três volumes dos Textos Recobrados ( recuperados ) de Jorge Luís Borges – Ed. Emecé , impresso naquele país cujo selecionado perdeu ontem para o escrete canarinho …

São textos que ficaram de fora dos quatro volumes das Obras Completas (lançadas aqui pela editora Globo) … há muita coisa boa :

Vejam por exemplo esta poesia que foi publicada na revista uruguaia Maldoror em 1985 .

EL DON

En una página de Plinio se lee

que en todo el orbe no hay dos caras iguales.

Una mujer le dio a un ciego la imagen

de su rostro, sin duda único.

Eligió la fotografía entre muchas;

descartó y acertó.

El acto fue significativo para ella

y también lo es para él.

Ella sabia que él no podía ver el regalo

y sabía que era un regalo.

Un invisible don es un hecho mágico.

Dar a un ciego una imagen

es dar algo tan tenue que bien puede ser infinito

es dar algo tan vago que puede ser el universo.

La inútil mano toca y no reconoce

la inalcanzable cara.(*)

(*) O DONATIVO

Em uma página de Plínio se lê

que em todo o planeta não há duas caras iguais.

Uma mulher deu a um cego a imagem

de deu rosto, sem dúvida único.

Escolheu uma fotografia entre muitas;

descartou e acertou.

O ato foi significativo para ela

e também foi para ele.

Ela sabia que ele não podia ver o presente

e que sabia que era um presente.

Um donativo invisível é um ato mágico.

Dar a um cego uma imagem

é dar algo tão tênue que bem pode ser o infinito

é dar algo tão vago que pode ser o universo.

A inútil mão toca e não reconhece

a inalcançável face.

( Jorge Luis Borges – Tradução : José Geraldo de Barros Martins )