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O RESTAURANTE

Em meio a terrível pandemia Josias Germano abria o portão de sua residência para tirar o carro com o intuito de ir até o supermercado comprar mantimentos, quando sua fiel escudeira Marília Olávia, reparou um movimento estranho no restaurante italiano existente no lado oposto do quarteirão e pediu para que ele fosse averiguar… ao se aproximar ele sentiu um frio na espinha ao perceber o que de fato estava acontecendo… uma coifa prateda na calçada, funcionários de dois caminhões de mudanças a rechear os mesmos com mesas cadeiras e demais equipamentos… era o sinal que este era um dos inúmeros estabelecimentos que estavam fechando as portas em meio a crise… a exemplo do La Frontera ao lado do cemitério da Consolação, do PASV na Av. São João, do Itamaraty na R. José Bonifácio, do Cedro do Líbano na R. Pamplona… o Italianinho era mais um de uma série de casas que jamais iriam abrir novamente suas portas para abrigar seus fiéis fregueses…

Após bater palmas Josias Germano viu emergir dos escombros do que já não era mais um restaurante, o até então proprietário Saulinho e sua simpática esposa: eles confirmaram a triste notícia, informando que estavam se retirando para o interior do estado… neste momento Marília Olávia chegou e percebendo o que estava acontecendo começou a chorar…

Após se mudar para aquela rua, cerca de quinze anos atrás, Josias Germando não deu muita bola para aquele restaurante… foi um par de vezes, … quando Marília Olávia foi morar com ele , ambos só iam de vez em quando… porém um dia perceberam que O Italianinho servia uma bisteca  à fiorentina magnífica (uma carne esplêndida grelhada com folhas de louro e alho-poró). Nem em Firenze não comeram uma bisteca melhor do que aquela… então entenderam que se explorassem melhor o cardápio poderiam encontrar pérolas semelhantes… o que verificaram ao experimentar o tagliatelle com lulas ao limão, o penne com camarão flambado na vodka, o gnocchi com iscas de pescada, os risotos de alho poró e de beterraba com presunto crú, o filé Oswaldo Aranha, etc… e todos estes pratos eram acompanhados de uma carta de vinhos  e espumantes criativa e com preços honestos … sem falar de algumas entradas com a burrata, e das sobremesas…

 Mas além dos comes e bebes, o que transformou O Italianinho em um refúgio entre as pradarias de mediocridades urbanas, foi o calor humano… a começar pelos simpáticos amigos que Marília Olávia reencontrou lá: Gáudio e Luzia que junto com um casal de amigos, Cristiane e Délio propiciaram uma adorável companhia… depois, pelos garçons…

Particularmente o nosso protagonista detesta ser servido por estes jovenzinhos de roupas pretas e gel no cabelo… para ele garçon é garçon… de preferência mais velho do que eu e que possa chamar pelo nome…

No O Italianinho trabalhavam dois garçons de verdade e magníficos: Claudemir, um gentleman discreto e classudo que fazia uma capirinha exemplar, e o Tatá… este era a alma do lugar… em primeiro lugar era são-paulino… isto é fundamental: o Tatá jamais poderia ser corintiano, flamenguista, gremista ou torcedor do clube atlético mineiro… um garçon perfeito só pode ser torcedor do mesmo time do presente cliente, pois sabia a hora de se calar e a hora de zombar… em segundo lugar, Tatá sabia tudo sobre seu ofício, desde os pratos servidos  (muitos não estavam no cardápio, mas que ele assegurava que poderiam ser executados para o desepero dos cozinheiros) até  os vinhos disponíveis (sempre indicava vinhos com ótimo custo-benefício, geralmente espanhóis ou italianos)… em terceiro lugar ele era muito espirituoso… com um raciocínio rápido suas tiradas era geniais… um nível de humor sutil… as vezes Josias Germano conseguia retrucar a altura… uma vez após pedir uma bisteca a fiorentina e o Tatá afirmar (brincando) que a carne tinha acabado… o nosso protagonista retrucou indagando se não tinha restado nem um filé do açougue do “seu Manuel” que ficava duas ruas acima… (na verdade o “seu Manuel” não possuia açougue algum, mas sim uma pequena sapataria)…  Foi uma das únicas vezes em que o garçon olhou para o costumeiro cliente querendo dizer “reconheço que hoje você foi mais esperto”.

Mas o fator principal que fazia O Italianinho um restaurante especial era o proprietário Saulinho… além da competência e criatividade, o que chamava atenção era a dedicação… em muitas oportunidades quando via Josias Germano e Marília Olávia adentrarem seu estabelecimento ele fazia a questão de ir para a cozinha para preparar pessoalmente os pratos solicitados… outra coisa que chamava atenção era o caráter sazonal do cardápio… muitas vezes as lulas, os camarões, as bistecas estavam fora do cardápio… quando a matéria prima não estava a contento, Saulinho preferia não disponibilizar estes pratos para os clientes…  Outra habilidade do Saulinho é o conhecimento de vinhos e espumantes… a carta de bebidas sempre reservava surpresas… a última que nossos protagonistas  foram surpreendidos, foi com a aparição dos vinhos e espumantes Aracuri… uma maravilha que deveria  elencar a indústria vinícola brasileira à uma posição mais respeitável.

Agora tudo acabara… aquele imóvel vazio em meio aos restaurantes vizinhos (um português , outro japonês) fazia com que aquele sobrado que abrigava os três estabelecimentos parecesse uma boca banguela… Em meio a pandemia Josias Germano e Marília Olávia sabiam que por pior que fosse, aquele era um mal menor: muitos já foram e iriam ser levados pela pandemia e outros ficariam na miséria… Pindorama estava nas mãos de um governo incompetente e execrável… o pior tipo de gente possível eleito pelo pior povo possível… Josias Germano lembrou que a auto-definição do principal personagem de Herman Melville cabia como uma luva em nosso presidente emboaba: “não sou louco… sou demoníaco… sou a própria loucura enlouquecida”… era o capitão Ahab que devido a sua obsessão pela vingança com a baleia branca (que arrancara sua perna), leva seu navio ao naufrágio … um presságio de muitos governantes que embuídos de monomanias afundam seus países trazendo a morte e a desolação para seus habitantes: do cabo Adolf ao capitão Jair…

Não há mais jeito, ponderou Marília Olávia… somos uma nação chamada desastre… muita coisa ruim ainda irá acontecer… Ambos estavam muito tristes… não tanto pela falta do restaurante adorável do outro lado da rua, mas principalmente pelo futuro do Saulinho, do Tatá, do Claudemir e do pessoal da cozinha, gente adorável que mereceria um destino mais digno, fosse este país algo semelhante a um país de verdade e não algo que já é (e em um futuro próximo vai se tornar ainda mais) uma vergonha planetária…

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NAS MINAS GERAIS

Josias Germano e Marília Olávia resolveram enfim encarar a viagem às cidades históricas de Minas Gerais… viagem muitas vezes adiada em benefício de outros destinos sejam europeus, sejam latino-americanos, mas agora chega de Andaluzia, chega de Patagônia… eles iriam visitar as jóias do barroco mineiro… em vez do barroco de Bernini, o barroco de Aleijadinho, no lugar das ladeiras de Lisboa, as ladeiras de Ouro Preto…

Para tal, antes da tão adiada viagem, o nosso protagonista resolveu estudar sobre o assunto, então leu bastante: “Viagens aos Planaltos do Brasil” (Highlands of Brazil; with a full accout of the gold and diamond mines. Also canoeing down 1500 miles to the sea) de Richard F. Burton; “Barroco Mineiro”, Lourival Gomes Machado; “Aspectos das Artes Plásticas no Brasil” Mário de Andrade; “Passeio a Ouro Preto “ Lúcia Machado de Almeida, além do outros autores como Rodrigo Mello Franco Andrade, Augusto C. da Silva Telles, Lúcio Costa, Heliodoro Pires, Paulo Ferreira Santos, Carlos Del Negro, Roger Bastide, Germain Bazin , etc

A viagem foi maravilhosa, com vários atrativos: o concerto barroco com cravo na igreja Matriz de Tiradentes, as imagens de São José de Botas que viu em um museu de Ouro Preto, a culinária local com as mineirutudes tutuativas com destaque ao restaurante Tempero de Ângela em Bichinho (subúrbio de Tiradentes), a procissão da Semana Santa em Ouro Preto (onde os munícipes enfeitam as ruas), as diversas cachaças locais, as cervejas artesanais mineiras e por fim as igrejas: uma mais deslumbrante que a outra… diferente do barroco europeu, onde as igrejas são construídas no meio de cidades e seu exterior tem que se impor (ou se adaptar) ao meio circundante, as igrejas mineiras foram construídas literalmente no meio do mato, sem a necessidade de competir com o ambiente externo, possuindo na maioria das vezes, um exterior singelo (com exceções como o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas), mas internamente eram riquíssimas…. Na verdade duas igrejas impressionaram o casal protagonista: a igreja de São Francisco de Assis com sua volumetria original, seu teto de Manuel da Costa Ataíde e diversas obras (em diversos estilos) de Aleijadinho, e a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos com sua planta original (duas elipses interpenetrantes) e seus santos negros (São Eslebão, Santo Antônio de Nota, Santa Efigênia e São Benedito).

A viagem transcorria tranquilamente, porém quando foram visitar o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, o nosso protagonista ao observar os diversos profetas de Aleijadinho, percebeu um erro fundamental: apesar de conhecer muitas partes da Bíblia, ele não lera nada sobre os profetas (mesmo a estória de Jonas ele só conhecia superficialmente)… quem eram aqueles profetas? o que significava o leão junto ao profeta Daniel? Josias Germano comprou uma Bíblia (mais outra para a sua coleção) e no restante da viagem se dedicou a ler sobre os profetas…

De todos os textos dos profetas, Josias Germano se impressionara com a passagem sobre o Banquete de Baltazar (Daniel 5:1-30): Baltazar, rei da Babilônia, estava celebrando um banquete enorme com cerca de mil pessoas, e tendo bebido um pouco a mais de vinho mandou trazer os cálices de ouro e prata que seu pai Nabucodonossor havia trazido do templo de Jerusalém, e neles começaram a beber mais e mais vinho. Naquele momento surgiu no ar, um dedo de mão humana riscando traços no reboco da parede, no palácio real… Assustado, Baltazar chamou os sábio de plantão, mas ninguém decifrou o significado daquela escrita… até que por sugestão da rainha-mãe, mandou chamar o profeta Daniel… este, ao observar aquela escrita disse: “Eis o que está escrito naqueles traços: MINA, SICLO e FERES. MINA vem de contar. Deus contou o tempo do seu reinado e já acabou. SICLO vem de pesar: Deus te pesou na balança e te faltava peso. FERES vem de dividir: o teu império será dividido e entregue aos medos e aos persas.”

Josias Germano lembrou-se do quadro de Rembrandt que ele havia apreciado na National Gallery em Londres… agora sim ele compreendera o significado daquela obra: o rei babilônico estarrecido, diante da mão vinda do além que escrevia palavras em uma linguagem desconhecida…

Após a Semana Santa em Outo Preto, rumaram para Mariana… estavam na praça entre as igrejas de São Francisco de Assis e de Nossa Senhora do Carmo… Marília Olávia resolveu descansar, enquanto Josias Germano resolveu desenhar… porém após a conclusão do esboço, ele começou a pensar na tragédia de Mariana, do mar de lama que invadiu estado do Espírito Santo… ele pensou em outro mar de lama: a corrupção em todos os níveis e esferas do poder… pensou então na conivência oportunista de muitos com o estado das coisas, na febre amarela, na violência generalizada do crime organizado & da banda podre da polícia, na vulgaridade emboaba da música que toca nas rádios, nos péssimos resultados de seu querido tricolor paulista, na mania das pessoas de estarem conectadas em redes sociais sem olhar ao redor, na desigualdade social cada vez mais acentuada com globalização da economia…

Então naquele momento ele teve uma epifania: ele descobriu que a “Nova República” já acabou (MINA), nossa estrutura político-social não tem consistência (SICLO) e que o Brasil será dividido e entregue aos americanos ou chineses (FERES)…

Viu que estava tudo muito claro… que não precisava de uma mão surgir do além em meio a um banquete no Palácio da Alvorada para escrever signos obscuros…

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PÁSCOA EM VENEZA

Josias Germano e Marília Olávia estavam novamente em Veneza, chegaram cansados pois a sexta-feira santa em Sevilha fora intensa… as ruas tomadas de fiéis em procissões, o calor latejante… uma coisa que eles sempre julgaram um mistério: apesar da Itália ser o centro do catolicismo, o local do planeta em que a semana-santa era celebrada com maior devoção era a Andaluzia… O plano inicial seria passar o domingo lá mesmo naquela cidade a beira do Guadalquivir, mas por algumas contingências que não cabe aqui explicar, eles resolveram celebrar a páscoa em Veneza…

No sábado de aleluia, fizeram uma bússola mental para o dia seguinte: assistiriam a missa pascal na Igreja da Madonna dell’ Orto, depois rumariam para aquela pequena loja de vinhos perto do Canale Cannaregio, onde estiveram na última vez que visitaram aquela cidade; tomariam umas taças de aperitivo, para depois almoçar na Trattoria da Gigio.

Ao adentrar a igreja, Josias Germano reparou nos afrescos de Tintoretto: de uma lado um episódio do velho testamento: A Adoração do Bezerro de Ouro… do outro lado um episódio de novo: O Juízo Final… Ao avistar este, o nosso protagonista, não sabemos por qual motivo, se lembrou da pintura “Los Borrachones” que Geoffrey Firmin vislumbra na casa de Jacques Laruelle no sétimo capítulo do livro “A Sombra do Vulcão” de Malcom Lowry… depois voltou a observar o outro afresco e se lembrou das notícias sobre a corrupção vindas de sua Pindorama natal… então a missa começou…

Saindo da igreja rumaram para a pequena loja de vinhos no Canale Cannaregio… a fachada permanecia a mesma: toldo e batentes turquesa e entre a porta e janela, um barril alongado com vasos de flores em cima… lá dentro o mesmo senhor simpático em meio aqueles garrafões vinhos locais (Bengentile, Maestro, Malorosso, Rulacuori, etc) vendidos em garrafas pet a preços irrisórios… mas o melhor não era o preço dos vinhos e sim conversar com os frequentadores locais…

Naquele domingo enquanto saboreavam um Rosso di Laguna, reparam em uma casal de velhinhos: ele vestindo um paletó de tweed marrom, camisa azul clara e calça bege, boina de lã (provavelmente irlandesa),…ela de trench coat, calça cinza, e lenço de seda no pescoço… os senhores também simpatizaram com nossos protagonistas e após notarem que os dois conversavam entre si em português, puxaram conversa em espanhol e começaram a contar a vida deles…

Ele se chamava Juan Carlos Laurelli nascera em Guernavaca, no México, filho de um pintor e anarquista toscano, que como Trotsky e tantos refugiados políticos do velho continente, rumaram para aquele país sob a proteção do então presidente Lázaro Cárdenas. Lá encontrou uma conterrânea, nascida na região do Vêneto, que fora para aquele país estudar fotografia com Tina Modotti, quando esta estabeleceu seu estúdio fotográfico na Cidade do México. Desde pequeno ele ficara encantado pelo cinema e já na pré-adolescência perambulava pelos estúdios de cinema mexicanos, conseguindo uma ponta no filme “Los Olvidados” de Luis Buñuel onde fez uma breve aparição no papel de menino de rua. O cineasta aragonês simpatizou com o jovem e este passou a desempenhar o papel de faz-tudo nas produções mexicanas de Bunûel. Quando este retornou à Espanha para filmar Viridiana, Juan Carlos foi junto, porém ele não se adaptou a Espanha de Franco e logo rumou para a terra de seus pais, mais especificamente para a Cinecittá.

Ela se chamava Antonella Adobrandini e nascera em Bellagio, a beira do Lago de Como e pertencia a uma antiga família aristocrática, e após tentar algumas vezes o desenho de modas em Milão, resolveu trabalhar como figurinista com um amigo da família: Luchino Visconti… nos estúdios da Cinecittá conheceu Juan Carlos… logo se apaixonaram e foram viver em Castellammare di Stabia, na beira do Vesúvio… agora iriam passar o resto de suas vidas em Veneza.

Os nossos protagonistas também contaram a história de suas vidas, e falaram também sobre aquelas férias: Lisboa e o Tejo, Sevilha e o Gadalquivir e agora Veneza e Gran Canalle… contaram também sobre a missa que tinham acabado de assistir na Igreja da Madonna dell’ Orto. Josias Germano intimidado com a bagagem intelectual de Juan Carlos resolveu comentar a analogia que percebera há pouco entre o afresco de Tintorretto e a pintura descrita no livro “A Sombra do Vulcão”… achou que poderia causar certa impressão com este comentário, pois Juan Carlos com certeza deveria conhecer o livro (que se passa em sua cidade natal) e que ganhou uma bela versão cinematográfica nas mãos de John Huston…

Ao ouvir o comentário de nosso protagonista, os olhos de Juan Carlos se iluminaram, Josias Germano percebeu que até então aquele senhor os julgara como mais um casal de turistas simpáticos, mas agora ele percebera que aquele era uma casal diferente, então se encorajou e perguntou:

– O senhor já leu este livro?

– Sim… Este livro é muito profundo, poucos percebem o seu significado. Este livro, como outros está impregnado de elementos da doutrina da Cabala…

– O que é esta coisa de Cabala? – Perguntou Marília Olávia.

– Estudando a doutrina, vocês entenderão que a visão dualista, do tipo o bem contra o mal, é uma coisa ultrapassada… na verdade existem duas forças, o positivo e o negatino, jachin e boaz ou o yang e o yin (na concepção oriental), e entre elas o caminho do meio… seguindo este caminho através do equilíbrio estamos nos aproximando do que se constuma chamar de “bem”, enquanto que toda vez que nos posicionamos dos estremos de qualquer um destes lados estamos nos aproximando do “mal”, seja do “mal positivo” onde tudo pode (luxúria, alcoolismo, corrupção,etc) seja do “mal negativo” onde nada pode (repressão sexual, abstinência, intolerância, etc.)… Este é o real significado de Jesus crucificado entre os dois ladrões: a redenção é o caminho do meio, o caminho do Tao… e quando uma pessoa, empresa ou país fica muito tempo em um extremo, logo salta para o outro extremo em um movimento pendular… veja o país de vocês: depois de anos de corrupção agora é a vez da justiça implacável!!!

– A conversa está muito interessante mas precisamos almoçar… – disse Antonella , que até então estivera praticamente calada.

– Nós também… estamos indo na Trattoria da Gigio., que fica aqui perto – respondeu Marília Olávia -Se voçes quiserem nos acompanhar são nossos convidados…

Então Juan Carlos olhou para sua esposa e disse:

– Nos encontramos lá, mas antes precisamos passar em nossa casa para buscar uma coisa. Mas não se preocupem, nós moramos aqui pertino e logo nos encontraremos…

(….)

No final do almoço, antes do café, quando estavam tomando uma grappa digestiva, Juan Carlos disse:

– Sabe, Josias… vou confessar uma coisa que não comento com quase ninguém… meu pai conheceu Malcom Lowry… e o personagem Jacques Laruelle foi inspirado no meu pai Giancarlo Laurelli, por isto que não gosto da versão cinematográfica do Huston, em que este personagem foi suprimido… mas o que eu queria dizer é que o quadro descrito no livro que você comentou, na verdade existiu.. e foi pintado pelo meu pai… eu me lembro dele vagamente… não sei se ainda existe… provavelmente não… meu pai o deu de presente ao Lowry, que em troca presenteou meu pai com este livro… onde eu aprendi o pouco que sei sobre a Cabala… agora este livro é seu… não discuta… estamos muito velhos… até agora não encontrei algém que fosse digno deste livro… fique com ele…

Juan Carlos retirou um embrulho da bolsa de sua mulher e colocando nas mãos de Josias Germano, finalizou:

– Não abra agora.

Depois se despediram trocando e-mails, whatsapps e demais contatos eletrônicos…

Ao chegar no apartamento alugado, a primeira coisa que Josias Germano fez foi rargar aquele embrulho e examinar o livro, quando então se deparou com uma edição original do livro “The Holy Kabbalah”, escrito por Arthur Edward Waite com a seguinte dedicatória: (aqui vai traduzido)

“Giancarlo Laurelli, em retribuição ao quadro, aqui vai um livro… espero que te sirva.

Malcom Lowry”

Josias Germano percebeu então que o contratempo que os obrigou a ir celebrar a Páscoa em Veneza tinha um motivo do destino…

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bellagio

FIM DE TARDE EM BELLAGIO

Josias Germano e Marília Olávia saíram satisfeitos daquele restaurante em San Giovanni perto de Bellagio no norte da Itália… afinal o primo piatto de ambos foi um “Riso com Filetto di Persico” enquanto que o secondo piatto foi “Agoni al Burro e Salvia” para ela e “Agoni Grigliati” para ele… isto é, pratos com peixes típicos do Lago de Como, regados com jarras de vinho branco da casa… de sobremesa Sorbetto al Limone…

Resolveram não passar pelo centro de Bellagio, cheio de turistas e lojas… preferiram caminhar pela orla e depois cortar caminho até o apartamento que haviam alugado na aldeia de Visgnola, em um local afastado no alto do istmo, onde poderiam contemplar o Lago de Como durante o crepúsculo…

Era domingo, alguns moradores faziam piquenique nos poucos locais em que era permitido tomar banho de lago, enquanto que um ou outro proprietário daquelas mansões levemente decadentes presentes na região, passeavam com seus jaguares e ferraris pelas estradinhas locais…

Ao reparar em um Bentley azul-claro que passou rente a eles, Josias comentou com sua fiel escudeira sobre o choque cultural que iria ocorrer quando os refugiados do norte da África chegassem naquele pedaço da Itália onde os astros de Hollywood tinham suas casas de veraneio… por enquanto ainda não haviam avistado nenhum, mas era uma questão de tempo…

Quando estavam perto do apartamento, os nossos protagonistas observaram que em um posto de gasolina que não estava funcionando, havia um vendedor ambulante conversando com um casal de turistas… resolveram comprar camisetas e meias de lã e se aproximaram… Enquanto Marília Olávia observava os produtos expostos, Josias Germano ouvia a animada conversa entre o ambulante e o casal de turistas…

O vendedor, embora humildemente trajado, tinha uma certa elegância e sua aparência magrebina contrastava com o alemão praticamente sem sotaque com que conversava com os turistas… Sua história era peculiar… seu avô, descendente do príncipe Ludwig Von Larghenburg, fora oficial do exércio alemão, mais precisamente do Afrika Korps tendo servido sob o comando de Rommel. Ele se chamara Hans Von Larghenburg, e fora major da Aufklärungs-Abteilung 33 (*), nunca simpatizara com o nazismo, mas como sua família sempre estivera ligada ao exército prussiano, não fugira da luta, inclusive havia sido condecorado com a Ritterkreuz (**) na campanha da França… mas no meio da campanha da Africa já estava desiludido, nem tanto devido ao desenrolar da guerra (embora já previsse a catástrofe alemã), mas o que afligia-o mesmo eram as notícias do que estava acontecendo no leste europeu… No meio da batalha de Alam Halfa, em meio a nuvens de poeira e explosões, embrenhou-se com seu tanque no deserto adentro… e desertou… passando a se chamar … Hassan Fhaan L’ Ahag in-Bour

Ele, mais de meio século depois viria fazer o caminho inverso ao de seu avô… Major do exército de Bashar-al Assad também desertara e antes do início do conflito da Síria fugira para outro continente, exercendo a profissão de camelô em Palermo, Roma, San Geminiano e Bellagio… sempre seguindo para norte, até chegar na Alemanha… Quando chegasse lá, iria reinvidicar o passaporte alemão e iria mudar o nome de Hamid Fhaan L’ Ahag in-Bour para HermmanVon Larghenburg

Marília Olávia disse:

Não gostei de nenhuma meia, estava procurando uma meia de lã grossa estilo alpinista, mas não tem… vamos embora? Estou um pouco cansada… O que é que este camelô está contando de tão interessante? (***)

É uma estória muito complicada, depois eu te conto…

Iam se afastando, quando o camelô gritou (em um português quase sem sotaque):

Calças, calcinhas e calcetas!!! Bolsas, Bolsinhas e Calçados!!!

O nosso protagonista não acreditou no que estava ouvindo… fazia mais de trinta nos que ele não ouvia aquele jargão típico com seu trocadilho boçal… tão comum no centro de São Paulo no final dos anos setenta…. virou-se então para o camelô e disse:

Onde você aprendeu a falar português?

Foi com o meu pai… mas se você achou a estória minha e do meu avô complicada, imagine quando ouvir a do meu pai que morou no Brasil, um pouco antes de eu nascer… ele foi camelô no centro de São Paulo, vocês são de lá?

Sim… Somos de lá…gostaríamos muito de ouvir a estória do seu pai… mas estamos cansados… precisamos descansar…

Então descansem e depois venham jantar lá em casa… disse apontando um casebre de pedras no topo da montanha… Se vocês quiserem enquanto conto a estória do meu pai para vocês, minha esposa pode preparar um ensopado Mulunkhie com carne de cordeiro… é só vocês levarem duas garrafas de vinho… seria muito bom… faz tempo que eu não falo português…

Josias Germano olhou para sua cara-metade e em menos de um segundo compreendeu que ela iria adorar aquele jantar… Já haviam lido sobre aquele prato com folhas da planta chamada mulunkhie , mas nunca haviam provado, face o fato da matéria prima ser indisponível na América do Sul… seria muito difícil terem outra oportunidade coma aquela para degustar tal iguaria… então disse:

– Combinado… vamos levar um Amarone e uma Francicorta (****), tá bom???

PS. : Anos depois eles iriam elencar aquele Mulunkhie como um dos cinco melhores pratos que comeram na vida.

(*) Unidade de reconhecimento blindada da 15 Divisão Panzer.

(**) Cruz de cavaleiro da ordem de cruz de ferro, condecoração do exército prusiano existente desde 1813

(***) No casal que falava alemão era Josias Germano, Marília Olávia sabia apenas as coisas básicas do tipo: “Guten Morgen”, “verzeihung” e “mineralwasser mit kohlensäure” (“Bom dia”, “com licença” e “água mineral com gás”)

(****) Franciacorta: vinho espumante da região da Lombardia / Amarone: Amarone Della Valpolicella vinho tinto da região do Vêneto (uvas Corvina e Rondinella)

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EM UM BOTECO DE AÇORES

Josías Germano estava feliz… finalmente ele estava no Peter Café Sport na cidade de Horta, Ilha do Faial, Açores… sempre lera sobre aquele local… seja em Antonio Tabucchi, Enrique Vila-Matas ou Agustin Fernandez Mallo… aquele bar também fora eleito como um dos melhores do mundo pela revista Newsweek…

Ele achou que o bar lembrava vagamente um pequeno restaurante que estiveram anos atrás, em outra ilha… a ilha em questão se chamava Chiloé e ficava no Chile… lá havia uma cidade portuária chamada Ancud, na qual havia um pequeno restaurante chamado Kurantum (*), e realmente tinha elementos em comum com o Peter Café Sport: forração em madeira, bandeiras de vários países, decoração peculiar … inclusive havia uma placa genial com o seguinte dizer: “AQUI SE COME MAL PERO AL FRENTE SE COME PEOR”… lá realmente eles haviam comido mal.. o prato com o nome da casa era a atração principal… o Kurantum é muito famoso na patagônia chilena e argentina… um cozido com mariscos, frango, carne de porco, batata e um caldo bem temperado, feitos com uma folha também chamada Kurantum…

Ela concordou quanto a semelhança dos locais, mas disse que tinha arrepios e tremedeiras só de lembrar do gosto daquele prato…

Ele ponderou afirmando que a comida realmente não era boa… porém lembrou-se da plaquinha… – Se fôssemos comer no restaurante vizinho seria pior…

Mas agora estavam em outra ilha.. e não estavam guiando como em Chiloé, então podiam pedir bebidas… e deixar a tarde se esvair numa fluidez iluminadora…

– Vou iniciar os trabalhos com uma dose de genebra, tal qual os personagens de Enrique Vila-Matas no “Mal de Montano”… depois vou beber gin-tônico… é gozado que em Portugal, Algareve e Açores eles não falam “gin-tônica” mas “gin-tônico”….

– Eu vou de vinho verde respondeu Marília Olávia…. Ela inicialmente não aprovara a viagem aos Açores… preferia ir para a Grécia… mas agora vislumbrando as belezas daquelas ilhas, dera o braços a torcer e admitira que aqueles cenários deslumbrantes compensaram a viagem…

Após alguas doses a conversa descambou para um único assunto: o paralelo entre as pessoas que vivem em uma ilha de verdade e as pessoas que vivem em ilhas culturais….

– As ilhas reais são cercadas de um belo pedaço de oceano… já as ilhas culturais são cercadas por mares de ignorância…” afirmou Josias Germano

– “É, você tem razão… é por isso que rumamos para o caos…. para um tsunami de ignorância…. ondas de intolerância religiosa, de violência gratuita, de boçalidade tecnologizada… em meio a tudo isso um punhado de escritores, artistas e pensadores em seus mundinhos a refletir sobre os abismos que os cercam….

– E neste bar convergem os dois tipos de ilhéus, ou seja tanto os habitantes desta ilha chamada Faial, quanto os habitantes das ilhas culturais como um Antonio Tabucchi um Enrique Vila-Matas ou um Agustin Fernandez Mallo…

– E o resto dos frequentadores?

– O resto são turistas ou velejadores… Quanto aos velejadores, podemos fazer um paralelo com o apreciadores das artes, ora estão na ilha de um estilo pictórico ora na ilha de uma tendência literária… atravessam os mares da burrice, buscando repouso ora em um bom livro, ora em uma bela exposição…

– E os turistas?

– Os turistas são como ratos ou baratas… surgem de repente infestando o ambiente…

– Mas nós somos turistas… ou você acha que está no pequeno grupo dos grandes escritores?

– Não, apesar de publicar uma coisinha ou outra na internet, eu não me julgo um escritor… ainda mais do grupo de gênios como os que passaram por este local…. eu sou simplesmente um turista… mas sabe… há um jeito de se passar por turista…

– É mesmo? E qual é este jeito?

– É só não viajar… E ficar ilhado em sua cidade…

(*) Para ver sobre o restaurante Kurantum acesse:

http://www.zegeraldo.lugaralgum.com/?m=201204

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UM DIA DE FÉRIAS

Aquele fim de tarde estava magnífico… Josias Germano e Marília Olávia estavam em um bar escondido a beira do Grand Canale de Veneza… a funcionária do apartamento que eles alugaram deu a dica: um local totalmente escondido e de difícil acesso, só frequentado por locais… alguns ficavam lá dentro… outros, como os nossos protagonistas, pegavam suas bebidas, saiam e ficavam naquele pedaço da Calle Remer que desemboca no canal, apreciando o crepúsculo envolvendo o Grand Canale…

Ele reparou que aquele crepúsculo finalizava um dia magnífico: após o café da manhã foram a uma pequena loja de vinhos perto do Canale Cannaregio e enquanto o dono enchia uma garrafa com um vinho local vindo de barricas, eles conversaram com os senhores locais que iam lá para bater papo… um velhinho de boina e cachecol contava histórias da batalha de Monte Casino… enquanto uma velhinha arrumada de cabelo channel protestava contra os políticos corruptos…

Ela reparou que estes bate-papos fortuitos são a alma das viagens e que estava feliz por terem se hospedado naquele bairro, onde ainda existe uma vida local com pequenos comércios frequentados por moradores, ao contrário das imediações da Praça de São Marcos onde não existem ambientes cotidianos… somente ruas com lojas e calçadas entupidas de turistas…

Ele reparou que estava contente pois estava conheçendo lugares diferentes de Veneza, que não havia conhecido em sua passagem anterior pela cidade ocorrida há 17 anos atrás… Agora ele conhecera aquela parte da cidade voltada para a ilha de San Michelle onde está enterrado Erza Pound… Visitara a Igreja da Madonna dell’ Orto e ficara impressionado com os afrescos de Tintoretto: um representando Moisés recebendo as tábuas da Lei, outro com o Juízo Final..

Ela reparou no almoço: haviam comido um peixe grelhado divino denominado orata (pargo) com sal e limão siciliano acompanhado de um vinho branco do vêneto típico: uvas pinot grigio e verduzzo … quando ela foi ao toalete, reparou em uma travessa de tiramisu caseiro… só a sobremesa já valera a refeição senão o dia…

Ele reparou que o que valera dia, além do tiramissu, foi o quadro “Banquete na Casa de Levi” de Paolo Veronese que haviam visto no Museu da Academia… a monumentalidade da pintura o impressionou… já havia estado neste museu mas não se recoradara que era tão bom… os outros quadros que haviam visto lá também eram geniais: Tintorreto mostrando personagens flutuantes, Bellini e Carpaccio mostrando a arquitetura e os personagens de Veneza nos século XIII.

Enquando acabava de beber o seu negroni, Josias Germano disse: “Aliás é interessante como os venezianos homenagearam seus pintores: um virou nome de coquetel, outro de prato de entrada, dizem até que a homenagem a Carpaccio deve-se ao fato que em seus quadros vê-se aquele tom de vermelho característico das fatias de carne crua… faltam as homenagens para Veronese e Tintoretto.. sugiro um prato chamado Veronese e uma sobremesa chamada Tintoretto.. fica mais sonoro… imagine “Por favor dois veronese, um al´ dente outro normal” ou “ Por favor dois tintorettos e dois cafés”

Ela finalizou seu Aperol-Spritz e ambos rumaram para o aconchego do transitório lar… no caminho Josias Germano lembrou-se de um episódio do antigo seriado “Além da Imaginação” (The Twilight Zone*) no qual uma loira vai a uma loja de departamento para trocar um dedal de ouro e após alguns incidentes fica escondida na loja após o fechamento… ao caminhar nos corredores ouve os manequins exclamarem repreensões… os manequins tornam-se humanos e cercam a loira … ela então se recorda que é um manequim também e que durante um mês ao ano tinha permissão para se transformar em ser humano, porém estava atrasada no retorno… deveria ter voltado na véspera, mas se esquecera… os outros manequins conversam e uma morena apanha o elavador se despedindo dos demais… no dia seguinte a loja de departamento abre e enquanto acompanhamos o trajeto de um vendedor, reparamos que a loira havia se transformado em um manequim…

-”Esta estória é uma metáfora das férias”- exclamou Josias Germano -“durante um mês ao ano, podemos deixar de ser bonecos para nos transformar em pessoas…

Pois é – respondeu Marcília Olávia – então vamos viver com intensidade estes dias, pois logo mais nos transformaremos em bonecos…

E caminharam em direção ao Canale Cannaregio respirando a noite de Veneza…

(*) Episódio denominado “The After Hours” disponível na internet (em inglês)

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A BATALHA DOS GUARARAPES DOS PERDEDORES

Josias Germano e Marília Olávia não gostavam de assistir partidas de futebol em bares e restaurantes… “Jogo de futebol é uma coisa séria… não dá pra assistir ao lado de um monte de gente tôsca falando sem parar!!!… é preciso silêncio para assistir pela tevê… ou então é melhor ir ao estádio… agora assistir jogo em bar é como o sapatênis que não tem a elegância do sapato nem o conforto do tênis…” – costumava dizer o nosso protagonista… Porém naquele sábado um casal de amigos que eles não viam há muito tempo ligou dizendo que estavam no restaurante português situado em frente ao lar habitado por Josias Germano e Marília Olávia…e que gostariam da assistir o Brasil X Holanda junto com eles… o jeito foi ir…

Ao chegar lá encontraram Alonso Hernandez e Suzana Navarro, (ele espanhol ela goiana, filha de espanhóis) tomando um vinho verde e comendo bolinhos de bacalhau.. o jeito foi sentar e acompanhar…

Começaram a falar sobre a Andaluzia, terra de Alonso e dos antepassados de Suzana e Marília… esta contou sobre a recente viagem à Espanha, Salamanca, Toledo, Córdoba, Granada, Sanlúcar de Barrameda e Gualchos, o vilarejo de onde veio seu avô…

Depois falaram sobre literatura… o nosso protagonista começou enaltecendo o jovem escritor espanhol Agustin Fernandez Mallo, pois havia lido “Limbo” seu mais recente livro ainda não editado no Brasil, que tinha sido comprado em uma livraria despretensiosa em Granada… depois falou sobre os autores que lera recentemente, Alejo Carpentier, Mário Benedetti, Macedônio Fernandes, e Euclides da Cunha… Marília Olávia disse que estava relendo Eça de Queiróz, Suzana Navarro disse que estava relendo Hilda Hilst e Alonso disse que estava lendo um uruguaio que tinha o mesmo sobrenome que ele, só que se chamava Felisberto.

Por fim falaram sobre a copa… o nosso protagonista fez um breve discursso que começou com a batalha de Guararapes, passou por diversos Brasil X Holanda: do inicial na Copa de 74, (quando o carrossel holandês de Cruyff superou a seleção de setenta requentada de Rivelino), para o histórico 3×2 da Copa de 74 (quando o escrete canarinho começou bem, sofreu uma pane e por fim fez um gol sofrido), passando pela semifinal de 98 (Pindorama ganhou nos pênaltis) e finalizando no penúltimo vexame: a eliminação na Copa da África do Sul… depois o assunto mudou para o vexame do escrete canarinho diante da blitzkrieg teutônica… ninguém ainda entendera os sete-a-um… para Marília Olávia o resultado era fruto da frieza alemâ, para Suzana Navarro era devido a imaturidade dos jogadores de Pindorama… Alonso Henandez por sua vez traçava paralelos do apagão de Belo Horizonte com outro apagão: a derrota do Santos para o Barcelona em 2011: em ambas as partidas o jogadores tupiniquins ficaram paralizados diante de uma equipe táticamente mais organizada… sem contar que os estilos de Felipão e Muricy são muito parecidos: ausência de meio de campo, chutões para a frente, gols de boila parada, etc…

Porém Josias Germano, adepto das teorias de Arthur Schopenhauer, tinha uma explicação diferente: segundo a lógica do filósofo alemão todos nós fazemos o que desejamos, só que o impulso do desejo se dá de forma inconsciente, de forma que quando alguém fracassa é porque desejava fracassar… ou seja, todos nossos sucessos e fracassos são coisas desejadas por nós… só que desejadas de forma inconsciente… desta forma, o grupo da seleção realmente desejava fracassar, desejava apanhar de sete-a-um… e talvez alguns jogadores, depois de ouvir aquele monte de palavras de auto-ajuda tenha, tenha sem querer, descoberto esta realidade: que o desejo deles era sofrer uma humilhação histórica… e por isto o choro, o pranto, aquelas lágrimas convulsivas derramadas antes das partidas: eles inconscientemente já sabiam que caminhavam ao encontro de seu desejo secreto: conseguir uma humilhação muito maior do que a seleção de 50… tanto que já começaram a Copa com um gol contra…

Quando o nosso protagonista acabou a explicação, chegou o bacalhau a Gomes de Sá acompanhado da segunda garrafa de vinho verde…

Então todos ficaram em silêncio e começaram a comer, assistindo o início da partida na tevê de tela plana e tendo a consciência que independente do terceiro o quarto lugar aquela seleção já havia conquistado o que sempre sonhara…

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UM ALMOÇO E SUAS CONSIDERAÇÕES

Josias Germano resolveu almoçar no centro de São Paulo, uma vez que pela tarde tinha uma reunião na R. Barão de Itapetininga… como estava um calor insuportável, ele optou por comer salada e sushi em um restaurante na R. Direita… geralmente o nosso protagonista não gostava de culinária japonesa em restaurante por quilo, mas naquele local a comida era bastante honesta, embora não fosse genial…

Josias Germano se dirigiu à R. Direita, no quarteirão entre o Largo do Patriarca e a R. Quintino Bocaiúva e não encontrou o restaurante… achou então que a casa ficasse na R. da Quitanda, mas também não era lá… então voltou à R. Direita e rememorando mais profundamente a arquitetura do restaurante descobriu que ele tinha se transformado em uma loja de sandálias… conversando com a atendente descobriu que tal comércio havia sido inaugurado há apenas uma semana…

O jeito foi ir ao velho e tradicional Restaurante Itamaraty, na R. José Bonifácio defronte ao Largo de São Francisco… ao entrar o capitão (*) abriu a porta para ele, que se lembrou que seu avô ia lá diariamente, e então ficou fazendo contas para tentar adivinhar se aquele funcionário havia algum dia aberto a porta para seu avô…

Sentou-se na mesma mesa, chamou o garçon pelo nome e escolheu primeiro a tradicional empadinha, depois um rosbife com salada de batatas, para beber água com gás…

No intervalo entre a empada (tão tradicional que só tem de palmito) e o prato principal, Josias Germano então pensou em outros restaurantes que fecharam no centro, bem mais tradicionais que o referido quilinho-japonês… se lembrou da leiteria Americana onde sua tia-avó Quepitas o levara para comer sundays & banana-splits em meados da década de setenta… leiteria que também servia cerveja, como naquela memorável noite em meados da década de noventa, em que foram comemorar a abertura da exposição de arte que o nosso protagonista realizou com Sávio Cacciaccinni, Sancho Ruiz Maldini, Alfeu Doaragna, Juliana Dilgorzi e Miraldo Xavier, naquela passagem após o viaduto do Chá sob a R. Xavier de Toledo (que hoje se encontra fechada)… naquela noite o famoso artista Maurício Nogueira Lima foi na “avernissagem” (*) e depois rumou com eles para tomar umas cervejas na Leiteria Americana…

Josias Germano acredita que a presença daquele ilustre pintor em sua “avernissagem” é um dos troféus que irão aparecer em sua biografia (se esta for um dia escrita, é claro)…

O nosso protagonista se lembrou então nos painel de Nogueira Lima no Largo de São Bento e nas pinturas do artista amigo nas escadas da Estação São Bento do Metrô… pensou então no painel de Tomie Othake na R. Xavier de Toledo e voltou a suas recordações aos restaurantes que já não existem mais…

Lembrou do Lírico que ficava na R, Líbero Badaró, do Carlino que começou na R. São João, mas que depois foi para a R. Vieira de Carvalho… pensou no Gigetto que começou na R. Nestor Pestana, mas que Josias conhecera na R. Avanhandava, e por sinal já não funcionava mais lá (dizem que vai reabrir)…

Ele então pensou em locais em que nunca estivera, mas que sempre sonhou conhecer… lugares que ele iria se existisse a máquina do tempo… lugares como a Cervejaria Franciscano na R. Líbero Badaró onde Mário de Andrade tomava seus chopps, o Salada Paulista na R. Ipiranga, no Jequiti-bar na R. 24 de Maio, na Salsicharia Dois Porquinhos na Av. São João, no bar do Hotel Esplanada na Praça Ramos da Azevedo, na Choperia Heidelberg (que teve que mudar de nome para Choperia Harmonia) na R. Xavier de Toledo, no Nick Bar (***) na R. Major Diogo (vizinho ao Teatro Brasileiro de Comédia)…

Ficou imaginando que com a invenção da máquina do tempo, a indústria do turismo iria abocanhar este filão de mercado: “Ouça Dick Farney tocando no Bar Simpatia na R. Xavier de Toledo no final da década de 40”, “Conheça os bares da Vila Isabel que Noel Rosa freqüentava” seria o anúncio de uma agência de turismo no tempo… então ele imaginou Noel Rosa horrorizado com o enorme fluxo de pessoas com roupas estranhas que começaram a aparecer nos botecos que ele tanto gostava e então o sambista da Vila iria comentar com seus parceiros de samba:

“- Este pessoal que começou a aparecer é muito estranho… vamos fugir para os bares do Estácio…”

Josias Germano abençoou então a (ainda) inexistência da máquina do tempo “ – Imagine a muvuca que seria a Semana de Arte Moderna com hordas de intelectuais oriundos das décadas futuras aborrecendo os modernistas.”

No caminho entre o Largo de São Francisco e a R. Barão de Itapetininga ele se lembrou de uma matéria que lera sobre o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, no qual este afirmara que a partir de 1500 D.C. acabara o mundo para os índios de Pindorama… mas que apesar disto, muitos séculos depois ainda sobraram algumas aldeias indígenas… e que com a classe burguesa está acontecendo o mesmo… que seu mundo está acabando… que durante muito tempo ainda existirão bons restaurantes e lugares bonitos, mas que seriam lugares totalmente isolados, sem qualquer vínculo com o entorno degradado pela histeria consumista….

O nosso protagonista pensou, pensou e pensou… tudo isto em uma fração de segundos… e concluiu que pessoas como ele já não tinham lugar nesta cidade infestada de crakeiros, nóinhas, emboabas, moderninhos, mauricinhos e patricinhas… que lugares como o Itamaraty irão permanecer por muitos anos, mas serão com as atuais aldeias indígenas… algo totalmente alheio e anacrônico… e então começou a comer o rosbife…

Após o almoço, chegando na esquina da Praça do Patriarca com a R. Líbero Badaró virou à esquerda em direção a um sebo que fica no meio do quarteirão… e lá comprou um livro editado em 1935 pela Companhia Editora Nacional: “O Selvagem: Curso de língua Tupi viva ou Nheengatú” – Bibliotheca Pedagógica Brasileira – Série V “Brasiliana” Vol . LII – escrito pelo Gen. José Vieira Couto de Magalhães.

Então rumou para a R. Barão de Itapetininga, onde outrora funcionaram a Confeitaria Vienense e a Confeitaria Seleta…

(*) Capitão é o nome que damos àquele porteiros com quepe e jaqueta (podem usar luvas brancas também) que abrem as portas para a gente nos restaurantes e hotéis…

(**) O termo “avernissagem” foi criado pelo músico e filósofo Sidney Molina, que é um neologismo com as palavras vernissage e aterrisagem.

(***) O nome Nick Bar vem da tradução da peça “The Time of Our Life” de William Saroyam quem em terras pindorâmicas passou a se chamar “Nick Bar… Álcool, Brinquedos e Ambições” e foi encenada em 1949 no TBC…. posteriormente Garoto e José Vasconcelos iriam compor “Nick Bar”, sucesso na voz e piano de Dick Farney.

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PROCURANDO UM LIVRO

Josias Germano abriu aquela gaveta esperando encontrar o seu velho exemplar de “Com Vocês Antônio Maria” uma coletânea de crônicas do famoso compositor e jornalista pernambucano editada em 1994 pela Editora Paz e Terra… o motivo da busca era encontrar uma citação sobre a poesia de uma mulher dormindo, a beleza daquele corpo descansando em uma posição aconchegante…

Em vez de encontrar o tão esperado livro, ele achou seu velho álbum de fotografias das viagens que executara na década de noventa: sempre só, percorria de trem e de mochila as mais diversas cidades européias… se lembrou quando para economizar dormira em um depósito de toalhas no Hostal Vetusta em Madrid, se lembrou que quando chegou nesta cidade (a primeira que visitou no velho continente) passou três dias a base de gin, cerveja e porções de polvo, o que lhe rendeu uma tremenda infecção intestinal, lembrou-se da vernissage da exposição de Hélio Oiticica na Fundação Tapiás, em Barcelona, onde viu o cineasta Júlio Bressane deslocado, porém não teve coragem de ir lá conversar com ele (fato que se arrepende até hoje), se lembrou também da viagem de navio entre Le Havre (França) e Rosslare (Irlanda) quando para não ter que pagar cem doletas pela cabine individual, dormiu no chão da embarcação após encharcar-se de cerveja guinness e uísque irlandês, se lembrou de quando quase apanhou de quatro hooligans em Amsterdã (*), lembrou-se da emoção ao ver as obras de Agustin Lesage no Museu de Arte Brut em Lausanne no dia de seu aniversário, da seção de gravuras na British Library, em Londres, quando segurou em mãos obras de William Blake e Louis Wain, se lembrou das enormes colagens de Matisse no museu George Pompidou… vendo aquele álbum se lembrou também que só gostava de ser fotografado em movimento, por isso pedia para as pessoas tirassem fotos dele sempre andando… ele enquadrava a fotografia, passava a máquina para as mãos das pessoas que se dispunham a ajudá-lo e pedia: “quando eu estiver naquele ponto dispare a foto!”… achava que isto daria uma dinâmica das suas fotos de viagem… ele sempre caminhando.

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Depois pensou que aquela época de errâncias amorosas foi marcada pelas viagens solitárias, das quais os ícones eram as fotos caminhando solitário… eram viagens na base de “manhãs e tardes em museus e noites e mais noites em bares”… pensou que muito mais tarde descobriu aquela lição óbvia que afirma que as pessoas sempre buscam fora algo que na verdade está junto a elas… então pensou nas viagens atuais com sua cara metade Marília Olávia: hotéis cheirosos ao invés dos muquifos azedos em que se hospedara, carros alugados ao invés de trens sacolejantes, vinhos e pratos elaborados ao invés de destilados, cerveja e de vez em quando alguma comida, e muito mais importante que isso: alguém com que possamos conversar, reparar juntos nos mais diversos tipos humanos, dividir impressões sobre uma paisagem, comentar o sabor de um prato, tentar adivinhar seus ingredientes, trocar impressões a respeito de alguma obra de arte, …

Josias Germano largou o álbum e caminhou até o seu quarto… então observou sua esposa enrodilhada em um cobertor respirando suavemente…

Então finalmente ele se lembrou da frase de Antônio Maria:

“Nenhuma emoção é mais forte que a de entrar no quarto da mulher que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o calor, no ar do quarto.”

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(*) Josias Germano tomava uma cerveja em um bar em Amsterdã quando quatro hooligans sentaram ao seu redor puxando conversa de forma nada amistosa…. ele para cortar o assunto disse:

– I don’t Speak english.
– Where do you come from?
– I come from to Brazil.
– Show me your passport – responderam eles.
– I don’t need show my passport because my country have four Worlds Cups (este diálogo ocorreu logo após a Copa dos Estados Unidos em 1994).

Os quatro hooligans, que se diziam belgas, ficaram em silêncio, depois bateram palmas pausadamente… o nosso protagonista achou que já era a hora de ir embora, mas antes precisava terminar sua cerveja… também pegava mal sair correndo, então segurou o copo com uma mão e a garrafa com a outra e não largou até esvaziar a garrafa… sua intenção era estar com estes objetos a mão para atirá-los na cara do primeiro hooligan que viesse para cima dele… ele sabia que poderia ser espancado e que se isso ocorresse era melhor que o rosto do primeiro agressor ficasse sériamente desfigurado… os quatro mastodontes perceberam sua estratégia e gritaram para que ele soltasse o copo e a garrafa… Josias Germano olhou no fundo dos olhos do líder e reparou nos seus dentes quebrados e imundos enquanto este vociferava com a saliva escorrendo pelos cantos da boca… porém continuou segurando o copo e a garrafa até terminá-la com toda a calma do mundo… depois levantou-se e disse em bom português:

– Tchau bando de otários!!!

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QUE SAMBA BOM

Naquela noite de quinta-feira, Josias Germano, cansado de tanto trabalho estacionou seu carro na rua Sampaio Viana e foi a pé buscar sua cara-metade Marília Olávia no hospital onde ela trabalha… o plano era ir para um destes bares sofisticadinhos para fazer um mais que merecido répisauer com cerveja indian pale ale e bruscheta de aliche… porém ao passar na esquina da referida via com a rua Cubatão o nosso protagonista ouviu algo que não acreditou estar ouvindo… era simplesmente o samba “Que Samba Bom” (Arnaldo Passos/Geraldo Pereira) que estava sendo cantado por um grupo de samba em um botecão na esquina em questão… como estava um pouco adiantado ele resolveu entrar e tomar uma cachaça enquanto dava a hora de sua esposa sair da labuta… não costumava tomar cachaça… só tomava pinga antes de comer feijoada ou virado à paulista, no mais das vezes preferia um bom vinho, uma cerveja especial ou os famosos coquetéis clássicos (dry-martini, manhatan, negroni, mint julep, etc.) mas desta vez resolveu tomar uma boa cachaça de alambique…

A arquitetura do bar era como a de qualquer boteco: piso de lajotas cerâmicas, parede forrada de azulejos, mesas de fórmica, geladeira de marca de cerveja, televisão ligada (sem som, é claro), painel com fotos das porções e dos pratos principais, etc… O nosso protagonista notou algo estranho no grupo que tocava este samba clássico… rapidamente descobriu o que era: era um conjunto de cegos… reparou então que diferentemente da música estadunidense com sua tradição de bluesmen cegos (*), na música de Pindorama não existem sambistas cegos famosos…

Após um plantão de doze horas, Marília Olávia adorou na sugestão de irem no botecão ouvir aquele conjunto tão peculiar… Ao chegar instalaram-se em uma mesa perto da roda de samba… os músicos estavam no intervalo e comiam sanduíches e bebiam cerveja em um mesa próxima num clima de plena descontração… os nossos protagonista então pediram cerveja em balde com gelo e carne seca com mandioca…

Quando os sambistas retornaram uma sucessão de sambas clássicos: “Não Tenho Lágrimas” (Max Bulhões e Mílton de Oliveira, sucesso no carnaval de 38), “Leva Meu Samba” (Ataulfo Alves), “Argumento” (Paulinho da Viola), “Com Que Roupa” (Noel Rosa) “Iracema” (Adoniran Barbosa) “Mora na Filosofia” (Arnaldo Passos/Monsueto), “Escurinha” (Arnaldo Passos/Geraldo Pereira) , “Silêncio No Bexiga” (Geraldo Filme), “Poeta de Rua” (Gilson de Souza), “Aos Pés da Santa Cruz” (Lauro Maia), “O Bonde São Januário” (Wilson Batista/Ataulfo Alves), etc…

Em meio àqueles sambas clássicos Josias Germano imaginou que o nome certo para aquele grupo seria “Os Jorges Luíses Borges do Samba”… depois reparou na alegria dos sambistas, especialmente do baterista (**) que parecia estar em transe… então pensou em si mesmo e se envergonhou… no mês passado esteve em Sevilha e após um surto filosófico, resolveu que não iria mais se dedicar ao desenho e a pintura, sua grande paixão… agora vendo aqueles cegos executarem com maestria as canções clássicas do samba percebeu como sua resolução era um tanto quanto ridícula… ele pleno dos cinco sentidos deveria sim lutar, lutar & lutar para que sua arte prevalecesse em meio a mediocridade generalizada… então retirou do bolso sua lapiseira 2,5 mm – grafite 6B e começou a desenhar o grupo de sambistas na toalha de papel…

(*) Blind Lemon Jefferson, Blind Willie Mc Tell, Blind Mississippi Morris, Sonny Terry, Ray Charles, Cortelia Clark, etc.)

(**) A presença de uma bateria em uma roda de samba é objeto de discussão… muitos dizem que ela é absolutamente desnecessária, uma vez que o samba é a junção de vários instrumentos percursivos (pandeiro, tamborim, cuíca, surdo, etc), porém apareceu um tal de Milton Banana e provou que a coisa não é bem assim…

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