PÁSCOA EM VENEZA
Josias Germano e Marília Olávia estavam novamente em Veneza, chegaram cansados pois a sexta-feira santa em Sevilha fora intensa… as ruas tomadas de fiéis em procissões, o calor latejante… uma coisa que eles sempre julgaram um mistério: apesar da Itália ser o centro do catolicismo, o local do planeta em que a semana-santa era celebrada com maior devoção era a Andaluzia… O plano inicial seria passar o domingo lá mesmo naquela cidade a beira do Guadalquivir, mas por algumas contingências que não cabe aqui explicar, eles resolveram celebrar a páscoa em Veneza…
No sábado de aleluia, fizeram uma bússola mental para o dia seguinte: assistiriam a missa pascal na Igreja da Madonna dell’ Orto, depois rumariam para aquela pequena loja de vinhos perto do Canale Cannaregio, onde estiveram na última vez que visitaram aquela cidade; tomariam umas taças de aperitivo, para depois almoçar na Trattoria da Gigio.
Ao adentrar a igreja, Josias Germano reparou nos afrescos de Tintoretto: de uma lado um episódio do velho testamento: A Adoração do Bezerro de Ouro… do outro lado um episódio de novo: O Juízo Final… Ao avistar este, o nosso protagonista, não sabemos por qual motivo, se lembrou da pintura “Los Borrachones” que Geoffrey Firmin vislumbra na casa de Jacques Laruelle no sétimo capítulo do livro “A Sombra do Vulcão” de Malcom Lowry… depois voltou a observar o outro afresco e se lembrou das notícias sobre a corrupção vindas de sua Pindorama natal… então a missa começou…
Saindo da igreja rumaram para a pequena loja de vinhos no Canale Cannaregio… a fachada permanecia a mesma: toldo e batentes turquesa e entre a porta e janela, um barril alongado com vasos de flores em cima… lá dentro o mesmo senhor simpático em meio aqueles garrafões vinhos locais (Bengentile, Maestro, Malorosso, Rulacuori, etc) vendidos em garrafas pet a preços irrisórios… mas o melhor não era o preço dos vinhos e sim conversar com os frequentadores locais…
Naquele domingo enquanto saboreavam um Rosso di Laguna, reparam em uma casal de velhinhos: ele vestindo um paletó de tweed marrom, camisa azul clara e calça bege, boina de lã (provavelmente irlandesa),…ela de trench coat, calça cinza, e lenço de seda no pescoço… os senhores também simpatizaram com nossos protagonistas e após notarem que os dois conversavam entre si em português, puxaram conversa em espanhol e começaram a contar a vida deles…
Ele se chamava Juan Carlos Laurelli nascera em Guernavaca, no México, filho de um pintor e anarquista toscano, que como Trotsky e tantos refugiados políticos do velho continente, rumaram para aquele país sob a proteção do então presidente Lázaro Cárdenas. Lá encontrou uma conterrânea, nascida na região do Vêneto, que fora para aquele país estudar fotografia com Tina Modotti, quando esta estabeleceu seu estúdio fotográfico na Cidade do México. Desde pequeno ele ficara encantado pelo cinema e já na pré-adolescência perambulava pelos estúdios de cinema mexicanos, conseguindo uma ponta no filme “Los Olvidados” de Luis Buñuel onde fez uma breve aparição no papel de menino de rua. O cineasta aragonês simpatizou com o jovem e este passou a desempenhar o papel de faz-tudo nas produções mexicanas de Bunûel. Quando este retornou à Espanha para filmar Viridiana, Juan Carlos foi junto, porém ele não se adaptou a Espanha de Franco e logo rumou para a terra de seus pais, mais especificamente para a Cinecittá.
Ela se chamava Antonella Adobrandini e nascera em Bellagio, a beira do Lago de Como e pertencia a uma antiga família aristocrática, e após tentar algumas vezes o desenho de modas em Milão, resolveu trabalhar como figurinista com um amigo da família: Luchino Visconti… nos estúdios da Cinecittá conheceu Juan Carlos… logo se apaixonaram e foram viver em Castellammare di Stabia, na beira do Vesúvio… agora iriam passar o resto de suas vidas em Veneza.
Os nossos protagonistas também contaram a história de suas vidas, e falaram também sobre aquelas férias: Lisboa e o Tejo, Sevilha e o Gadalquivir e agora Veneza e Gran Canalle… contaram também sobre a missa que tinham acabado de assistir na Igreja da Madonna dell’ Orto. Josias Germano intimidado com a bagagem intelectual de Juan Carlos resolveu comentar a analogia que percebera há pouco entre o afresco de Tintorretto e a pintura descrita no livro “A Sombra do Vulcão”… achou que poderia causar certa impressão com este comentário, pois Juan Carlos com certeza deveria conhecer o livro (que se passa em sua cidade natal) e que ganhou uma bela versão cinematográfica nas mãos de John Huston…
Ao ouvir o comentário de nosso protagonista, os olhos de Juan Carlos se iluminaram, Josias Germano percebeu que até então aquele senhor os julgara como mais um casal de turistas simpáticos, mas agora ele percebera que aquele era uma casal diferente, então se encorajou e perguntou:
– O senhor já leu este livro?
– Sim… Este livro é muito profundo, poucos percebem o seu significado. Este livro, como outros está impregnado de elementos da doutrina da Cabala…
– O que é esta coisa de Cabala? – Perguntou Marília Olávia.
– Estudando a doutrina, vocês entenderão que a visão dualista, do tipo o bem contra o mal, é uma coisa ultrapassada… na verdade existem duas forças, o positivo e o negatino, jachin e boaz ou o yang e o yin (na concepção oriental), e entre elas o caminho do meio… seguindo este caminho através do equilíbrio estamos nos aproximando do que se constuma chamar de “bem”, enquanto que toda vez que nos posicionamos dos estremos de qualquer um destes lados estamos nos aproximando do “mal”, seja do “mal positivo” onde tudo pode (luxúria, alcoolismo, corrupção,etc) seja do “mal negativo” onde nada pode (repressão sexual, abstinência, intolerância, etc.)… Este é o real significado de Jesus crucificado entre os dois ladrões: a redenção é o caminho do meio, o caminho do Tao… e quando uma pessoa, empresa ou país fica muito tempo em um extremo, logo salta para o outro extremo em um movimento pendular… veja o país de vocês: depois de anos de corrupção agora é a vez da justiça implacável!!!
– A conversa está muito interessante mas precisamos almoçar… – disse Antonella , que até então estivera praticamente calada.
– Nós também… estamos indo na Trattoria da Gigio., que fica aqui perto – respondeu Marília Olávia -Se voçes quiserem nos acompanhar são nossos convidados…
Então Juan Carlos olhou para sua esposa e disse:
– Nos encontramos lá, mas antes precisamos passar em nossa casa para buscar uma coisa. Mas não se preocupem, nós moramos aqui pertino e logo nos encontraremos…
(….)
No final do almoço, antes do café, quando estavam tomando uma grappa digestiva, Juan Carlos disse:
– Sabe, Josias… vou confessar uma coisa que não comento com quase ninguém… meu pai conheceu Malcom Lowry… e o personagem Jacques Laruelle foi inspirado no meu pai Giancarlo Laurelli, por isto que não gosto da versão cinematográfica do Huston, em que este personagem foi suprimido… mas o que eu queria dizer é que o quadro descrito no livro que você comentou, na verdade existiu.. e foi pintado pelo meu pai… eu me lembro dele vagamente… não sei se ainda existe… provavelmente não… meu pai o deu de presente ao Lowry, que em troca presenteou meu pai com este livro… onde eu aprendi o pouco que sei sobre a Cabala… agora este livro é seu… não discuta… estamos muito velhos… até agora não encontrei algém que fosse digno deste livro… fique com ele…
Juan Carlos retirou um embrulho da bolsa de sua mulher e colocando nas mãos de Josias Germano, finalizou:
– Não abra agora.
Depois se despediram trocando e-mails, whatsapps e demais contatos eletrônicos…
Ao chegar no apartamento alugado, a primeira coisa que Josias Germano fez foi rargar aquele embrulho e examinar o livro, quando então se deparou com uma edição original do livro “The Holy Kabbalah”, escrito por Arthur Edward Waite com a seguinte dedicatória: (aqui vai traduzido)
“Giancarlo Laurelli, em retribuição ao quadro, aqui vai um livro… espero que te sirva.
Malcom Lowry”
Josias Germano percebeu então que o contratempo que os obrigou a ir celebrar a Páscoa em Veneza tinha um motivo do destino…
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