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O ESCRITOR

Desde o tempo de ginásio Riveiríssimo Riveiro era conhecido como o rei dos trocadilhos e das piadas infames… apesar de muito estudioso e bastante disciplinado, ele tinha uma incrível tendência para piadas de mau gosto… na época da faculdade, quando já estava mais intelectualizado, ela as chamava de “piadas de vanguarda”: – “São anedotas horríveis, nas quais a pessoa que as ouve não acha a mínima graça, porém a pessoa que as conta, ri a valer da cara esdrúxula dos ouvintes, ou seja a graça não é para quem ouve, mas para quem conta.”

Após uma carreira bem sucedida como consultor de marketing e planejamento estratégico, o nosso protagonista se sentia frustrado, pois seu sonho era ser escritor, para mostrar ao mundo seus chistes sob verniz erudito… Para isso começou a ler, ler e ler ainda mais… Quando percebeu que estava realmente preparado fechou seu escritório e resolveu levar seu sonho adiante.

A primeira preocupação foi com a aparência… baseado no conceito de dândi, ele resolveu se vestir sempre com terno, camisa e gravata na cor azul, enquanto que o colete e o lenço no bolso seriam amarelos… Desta forma criaria um diferencial com os escritores moderninhos, que com síndrome de Peter-Pan, se vestem tal qual adolescentes…

Com relação ao texto própriamente dito, Riveiríssimo Riveiro aprendeu depois de ler a “Filosofia da Composição” de Edgar Poe (*), que um escritor deve começar seu poema, conto ou romance, pelo final… porém o nosso protagonista percebeu uma coisa que até então ninguém havia se dado conta: o verdadeiro final de qualquer obra literária não é o último verso ou a última frase, mas sim a crítica da mesma obra… logo seu romance deveria começar pela crítica… porém como não fica bem alguém fazer a crítica de sua própria obra, Riveiríssimo Ribeiro adotou o expediente do heterônimo, inventado por Fernando Pessoa, ou seja imaginou um crítico que se chamasse Otacílio Heráclito: seria um professor formado na Faculdade de Letras de Assis – SP (na época em que Antônio Cândido e Mário da Silva Brito lecionaram por lá), com pós-graduação em literatura irlandesa no Trinity College (Dublin), etc, etc, etc…

Depois de alguns dias “Um Gênio ou uma Besta???” estava pronto… nesta crítica, Riveiríssimo Riveiro, ou melhor Otacílio Heráclito afirmava que apesar do trocadilho infame presente no título do livro, “Um Fusca no Campo Esquecido” (**), de alguma piadas infames (que não convém reproduzir neste mini-conto), o romance de Riveiríssimo Riveiro, era uma obra-prima: “ele criou num linguagem dentro da linguagem ao usar palavras que transportadas do uso comum, adquiriam um novo significado, ao serem submetidas a um ritmo e harmonia no qual significado e significante se fundiam em um só elemento estruturado pela memória afetiva do narrador, concretizando de certa forma as profecias de Paul Valéry”… e para fechar a crítica com chave de ouro (e para que os leitores não estranhassem que Otacílio Heráclito só iria fazer críticas a respeito das obras de Riveiríssimo Riveiro) ele terminou seu texto assim: “…e é por isso tudo que enquanto não aparecer na literatura ocidental um novo Cervantes, um novo Goethe, um novo Dante, um novo Joyce, daqui por diante eu só comentarei sobre os livros de Riveiríssimo Riveiro, pois afinal Gênio (com maiúscula) é Gênio, e estamos conversados!!!”

Após Otacílio Heráclito terminar “Um Gênio ou uma Besta???”, Riveiríssimo Riveiro começou a escrever “Um Fusca no Campo Esquecido”… findo o romance, o nosso protagonista foi procurar o único editor suficientemente esclarecido para publicar seu romance e fazer com que a crítica de seu heterônimo fosse publicada em um famoso jornal: Louis Monterrey, o rei do Marketing Editorial… o responsável pelo sucesso de “Rayghama”, o livro que abriu as portas do sucesso para Josué Jamil…

Com era previsível o rei do Marketing Editorial adorou o esquema inventado e na véspera de lançar o livro conseguiu que “Um Gênio ou uma Besta???” saísse em destaque no principal caderno dominical da metrópole paulistana… o artigo causou polêmica e garantiu um certo sucesso editorial para “Um Fusca no Campo Esquecido”… porém logo começaram a pipocar outras críticas, praticamente todas afirmando que o livro não era tudo isso e que a genialidade do autor somente poderia ser admitida sob a perspectiva da semiótica estruturalista de um fanático como Otacílio Heráclito…

Mas o nosso protagonista, não se fez por rogado e arquitetou uma jogada de mestre: Riveiríssimo Riveiro exigiu direito de resposta nos jornais e escreveu um artigo dizendo que havia telefonado para Otacílio Heráclito e combinado como crítico, que este só iria publicar um artigo sobre o próximo livro dele 21 dias após o lançamento, para que os outros críticos pudessem apreciar o obra sem a interferência de sua brilhante análise.

A partir daí, Riveiríssimo Riveiro, ou melhor Otacílio Heráclito escreveu dois textos, um intitulado “Eu não disse!!! Eu não disse!!!” e outro que se chamava “Mais uma vez ninguém entendeu nada!!!”… o primeiro seria publicado caso o próximo livro fosse um sucesso, enquanto que o segundo sairia se fosse um fracasso… finalizadas as críticas Riveiríssimo Riveiro começou a escrever seu próximo romance: “Os Linces” (***)

(*) a exemplo dos poetas franceses do final do século XIX, ele suprimia o“Allan”, uma vez que este era o sobrenome do pai adotivo que depois o renegou o famoso poeta norte-americano.
(**) o trocadilho infame é com o título do romance de Marcel Proust: “Em Buscado Tempo Perdido”
(***) Este trocadilho é tão óbvio que não precisa nem ler James Joyce para descobrir a resposta.

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OS RICOS TAMBÉM BABAM

– Fabrício Olegário Ulbrich? Você por aqui?

– Nossa… você é o Marcelo Aparício Demócrito, não? Quanto tempo… nossa como você está mudado…

– É… é a vida… e você o que tem feito?

– Eu? Ora agora minha vida é muito atribulada… depois de anos trabalhando em corretagem de imóveis, resolvi investir na Bolsa de Valores, com o lucros comprei uma fazenda e me dediquei a pecuária, não satisfeito passei também à agricultura, então resolvi criar uma transportadora, depois uma empresa de jatinhos e helicópteros, como vi que alguns sujeitos estavam enriquecendo com futebol resolvi comprar uma porcentagem dos passes de alguns jogadores que estavam surgindo, quando estes foram vendidos ao exterior, consegui faturar um bocado, mas na verdade não gosto de futebol, minha paixão é a Fórmula 1, como tornei-me amigos dos principais chefes de equipes e de alguns pilotos, consegui um bom din-din vendendo os espaços dos carros e dos macacões dos pilotos para os patrocinadores, como o meu nome estava em evidência no meio automobilístico montei uma rede de concessionárias, uma fábrica de amortecedores e tornei-me também o representante no Brasil de uma das maiores fabricantes de veículos do sudeste asiático, depois te conto o nome da empresa, mas não é só isso não… resolvi passar adiante a chave do meu sucesso, afinal seria muito egoísmo de minha parte não dividir com o mundo os processos mentais de planejamento empresarial que me tornaram um dos maiores bilionários do planeta, então lancei uma série de livros sobre o assunto, uma autobiografia em 5 volumes, e também abri uma universidade, mas não é só isso não, tem muito mais…

Fabrício Olegário continuou por cerca de 10 minutos a discorrer sobre os outros ramos de negócios nos quais se enveredara, sempre com sucesso, é lógico… para que este mini-conto não se tornasse uma novela, resolvi suprimir a continuação do relato… Então após ouvir tudo pacientemente, Marcelo Aparíco perguntou:

– Mas e sua vida pessoal? O que você tem feito?

– Passo muito pouco tempo do ano em São Paulo, na verdade fico entre o Guarujá, Miami e Mônaco, onde convivo com o pessoal da Fórmula 1… como tenho vários carros de rico, Ferrari, Porsche, BMW, Mercedes, etc… pertenço a clubes de proprietários de veículos, onde nos reunimos para discutir o desempenho de nossas máquinas…

– Mas BMW é carro de rico? Pensei que carro de rico fosse só Ferrari, Jaguar, etc…

– Ora, meu amigo, como dizia um finado apresentador de TV, dependendo do modelo é, dependendo do modelo não… mas obviamente só tenho os modelos mais caros…

– Mas voltando a sua vida pessoal, você continua casado?

– Não, separei-me… e sabe de uma coisa? Foi a melhor coisa que fiz, pois após a separação a minha vida se tornou muito mais divertida… sabe que minha vida profissional é um tédio em comparação com minha vida sexual… deixe eu te contar só um pequeno episódio… sabe aquela ex-modelo que se tornou a primeira dama da França? Pois bem, uma vez nós…

Neste instante aparecem os enfermeiros do Hospital Psiquiátrico e convidam gentilmente os pacientes a retornarem aos seus quartos, um deles, Rubão, um verdadeiro armário em forma humana, comenta com seu colega de trabalho adiposo:

– Sabe Laércio… eu tenho pena destes caras… o único que não me causa pena, mas somente um profundo desprezo é este babaca que acha que é milionário…

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AFINAL

I

Finalmente, após a realização das semifinais do Mundial da Àfrica do Sul, deu-se o esperado: a Grande Final seria Brasil e Argentina… finalmente uma Copa do Mundo terminaria com o clássico sul-americano, aquele que expressa a maior rivalidade do planeta: de um lado a escola de Pelé e Garrincha de outro a escola de Di Stéfano e Maradona… De um lado os brasileiros emboabas e barrigudos, porém orgulhosos das cinco estrelas que estão pousadas sobre o distintivo da camisa… do outro os argentinos com seus mulets terríveis, jurando que Maradona foi melhor que Pelé…

No Bar do Dimas estavam mais uma vez os quatro amigos… desde a Copa de 1982 eles assistem todos os jogos do escrete canarinho naquele mesmo lugar.. .chegaram até mesmo a pensar em mudar de bar, pois acharam que o lugar estava dando azar, afinal o desastre em Sarriá, a eliminação nos pênaltis contra os gauleses no México, a humilhante derrota nas oitavas de final frente os argentinos em 1990… Mas o Brasil foi campeão em 1994 e eles esqueceram esta ideia… agora, após o fracasso em Paris no ano de 1998, ao Pentacampeonato em solo nipônico em 2002 e a balada irresponsável de 2006, eles estavam reunidos para mais uma vez apreciar os jogos de uma Copa do Mundo… desta vez porém havia algo diferente… Era a mudança na vida de Deoclécio.

II

Dos quatro amigos Deoclécio, Joelton, Rubiney e Alcebíades, o primeiro era o mais brilhante, porém andava muito deprimido… No começo do ano chegara a pensar em suicídio, um dia, em meados de Março, neste mesmo bar em uma conversa com Joelton… confessou que não queria mais viver…

Joelton encarou-o e disse em tom irônico:

E então você vai perder a final desta Copa, Brasil e Argentina???

Deoclécio ficou um instante em silêncio, depois perguntou:

Mas, como você pode ter certeza de que será Brasil e Argentina???

Ora, os times europeus só jogam no próprio continente, nunca ganharam uma Copa do Mundo fora da Europa, parece time carioca que só joga no Maracanã… enquanto os times africanos não levam o jogo suficientemente a sério, são eliminados da Copa do Mundo e saem dançando… não, deste jeito não dá… de modo que só restam Brasil e Argentina para o título… ou um ou outro…

Neste momento Deoclécio percebeu que o que vale a pena na vida são os pequenos momentos, só eles é que importam… e quais seriam estes pequenos momentos??? O sabor de uma paçoca, as músicas de Braguinha, o doce olhar de sua esposa, e uma final Brasil e Argentina…

III

Deoclécio agora era outro homem, o sucesso lhe sorria com dentes gargalhantes, mas agora ele sabia que o dinheiro, a glória não eram o que mais valiam… o que vale mesmo eram os pequenos grandes eventos, por isto cancelara um compromisso importante para estar lá com os amigos, assistindo o escrete canarinho, tomando cerveja gelada e proferindo frases filosóficas:

– Não entendo a Itália, o país tem quatro títulos mundiais e não tem nenhum craque…

– E o Paulo Rossi?

– Não, o Paulo Rossi não é um craque, não no nível do Pelé, do Cruyiff, do Maradona, de Beckenbauer, de Zidane, etc…

– Vejam a roupa do Dunga… até parece um taxista…

– Vamos parar com a conversa!!! O jogo vai começar!!! E como diria um famoso locutor: – “Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo…”

PS.: Escrevi este mini-conto em 21/06/2010, logo após o escrete de Pindorama ganhar da Costa do Marfim… porém errei feio… achava que as seleções européias jamais iriam ganhar uma Copa fora do velho continente… e também achava que na final iriam restar Brasil e Argentina… mas como dizia Noel Rosa, que acha vive se perdendo… não só a final será entre a terra do jamón contra o país que fica embaixo d´água, como o melhor time sudamericano foi o Uruguai que irá disputar o terceiro lugar com a seleção dos comedores de chucrute…

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O ESTRANGEIRO

Nas primeiras vezes em que aquele homem foi ao Bar do Dimas, perto do Aeroporto
de Congonhas, ninguém reparou muito naquele homem de meia idade, entrava… pedia
um undenberg depois uma cerveja, lia o jornal Deutsche Zeitung, pagava e ia
embora… de vez em quando falava em voz baixa no celular… só repararam que ele
era estrangeiro… depois perceberam que ora atendia o celular em espanhol, ora
em alemão, ora em inglês, ora em francês e ora em outro idioma desconhecido… o
pessoal do bar achou estranho… porém quando souberam do rifle a coisa ficou
séria… descobriram que o estrangeiro alugara um galpão nas imediações do bar e
que sempre que entrava no galpão com um rifle em punho…quem contou foi o
carteiro que ao entregar uma encomenda estranhou o homem carregando aquele
troço… – “Que coisa mais estranha… este cara não sei não… deve ter alguma
coisa…”

Logo começaram a surgir conjecturas… alguém falou que ele devia ser um
ex-agente da DINA (a polícia secreta de Pinochet), outros achavam que ele era um
dos homens fortes da temível Escola de Mecânica da Armada (Instituição da
Marinha Argentina que se transformou em um centro de tortura), outros ainda
disseram que ele era uma daquele mercenários alemães que Klaus Barbie contratou
quando tentou instituir o 4º Reich na Bolívia,,, somente o Zé, que era o garçom
do boteco, que discordava dizendo: – “Que nada… este gringo não é nada
disso… não sei o que ele faz… só sei que este cara é um gênio!!!”

Na primavera daquele ano, foi solucionado o mistério… diversas reportagens nos
principais jornais destacaram a presença do maior gênio das artes plásticas
atuais na Bienal de Sâo Paulo: um alemão que para protestar contra as guerras no
Oriente Médio elaborou uma série de painéis onde perfurações de balas de fuzil
sobre enormes chapas metálicas formavam os logotipos das principais companhias
petrolíferas…

Passada a Bienal o estrangeiro deixou de frequentar o Bar do Dimas e regressou a
sua terra natal… O Dimas porém ficou uma pulga atrás da orelha e perguntou ao
seu único garçom:- “Zé, como é que você descobriu que no cara era um gênio???”

-“Ora, foi muito fácil… ninguém percebia, mas apesar de não saber alemão notei
que o gringo só lia aquele jornal de cabeça para baixo, ou de ponta-cabeça como
dizem os paulistas… ora um cara que lê o jornal desta maneira ou é um gênio ou
é uma besta… como o cabra falava várias linguas então só podia ser um gênio.

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ACONTECEU NEM BUENOS AIRES

I

Aconteceu em Buenos Aires (La Capital Federal), mais precisamente na Plaza de Miserere, naquela praça imunda no cruzamento da Av. Rivadavia com a Av. Jujuy… Na verdade a nossa estória começa em outra parte da capital platina, mais precisamente nos arredores do Caminito, um dos lugares turísticos daquela cidade, (ao contrário da Plaza de Miserere que de turístico não tem nada)… Pois bem, estava Tobias Tomásio e sua mulher Búzya Berlametz a voltar de uma visita guiada ao famoso & amigo Caminito… Era a sétima vez que ele visitava a Argentina e estava um pouco enfastiado daquela turistada… ao contrário dela que, apesar de conhecer bem a Europa e Oriente Médio, nunca havia visitado aquele país e estava achando tudo o máximo… Ao passar em frente a um vendedor de choripan (pão com lingüiça) ela sentiu o cheirinho vindo da churrasqueira e disse olhando para ele:

– Estou com vontade de comer este sanduíche!!!

– Nem pensar- disse ele – depois de amanhã começaremos a percorrer todo este país e uma indisposição intestinal pode arruinar tudo… no final da viagem, quando regressarmos para cá você come, tá bom???

– Tá…disse ela, um tanto choramingante.

Na verdade ela ficou bastante contrariada e só para provocar comia as coisas mais diversas no decorrer da viagem: comeu carne de lhama, aquele cozido com milho, feijão branco, carne e pimenta ají (que se chama locro criollo), as famosas achuras: entranhas grelhadas: mollejas (timos), chinchulines (intestinos delgados), morcillas (linguiças de sangue)…comeu também carne de javali e de cordeiro patagônico… ele não, no máximo um bife de chorizo, mas preferia mesmo era pechuga al verdeo (peito de frango com molho de creme de leite e cebolinha)…

Depois de percorrer o país de Salta a Patagônia, pasando por Cafayate e Mendoza (afinal não dá para comer tudo isto aí em cima sem um bom vinho para ajudar na digestão); eles retornaram à Capital Federal e depois de tanta comida e tanto vinho eles queiram mesmo era um cafézinho… Tobias Tomásio que conhecia muito bem aquela cidade, resolveu levá-la à esquina que serve o melhor café da cidade, o único com gosto de café brasileiro, mais precisamente o Café La Perla na esquina da Av. Rivadavia com a Av. Jujuy no coração do Miserere… Ao sair do café, passando pela praça imunda cheia de miseráveis, eles voltaram a sentir aquele cheirinho característico, o cheiro do choripan (perdõe-me pelo trocadiho infeliz) e ele achando que ela não teria coragem de comer um sanduíche feito naquele lugar, só de brincadeira disse:

– Quer um benzinho???

– Mas é claro!!! disse ela sorridente.

Ele até tentou argumentar, dizendo que aquele lugar não tinha a higiene adequada, mas não teve jeito… Porém logo que se aproximou do vendedor de choripan, este encarou Tobias por alguns segundos e exclamou em português fluente:

– Se você veio até aqui para reclamar sobre aquela partida de futebol de botão, fique tranquilo, não vou discutir… você estava certo: aquele gol não valeu: antes de tocar na bolinha “meu jogador” esbarrou em um jogador teu…

Tobias Tomásio estava estupefado: aquele homem era Teodorico Tomásio, seu irmão que estivera desaparecido há trinta e dois anos… Foi após uma partida de futebol de botão, que Teodorico abriu a porta da casa de seus pais, (no bairro de Marapé na cidade de Santos) e saiu para nunca mais retornar. Mas por quê??? Por que você nunca mais retornou??? Veja, esta aqui é á Búzia, minha esposa, sirva um choripan para ela, primeiro… depois dispense este fogareiro e vamos todos comer e beber por minha conta comer no restaurante do Hipódromo de San Isidro, para celebrar o reencontro!!!

II

Foi um almoço maravilhoso, naquele restaurante chique possuidor da melhor e maior carta de vinhos da Grande Buenos Aires…Teodorico aos prantos pediu desculpas, e disse que sempre planejara fugir de casa, mas ninguém iria aceitar o motivo, e então arranjou um pretexto para uma discussão seguida de fuga: uma partida de futebol de botão… após um bate-boca com Tomásio, ele fugira de casa e partira da cidade em um circo com destino ao interior do estado de São Paulo, e daí seguira uma vida errante, foi bóia-fria em Minas Gerais, açougueiro em Goiás, segurança de boate em Mato Grosso (e Campeão de Tiro ao Alvo em Cuiabá), foi garçon no Paraguai e também compôs duas guarânias (uma foi gravada a outra permanece inédita), foi taxista na Bolívia (nas horas vagas jogava em um clube da segunda divisão daquele país), foi cozinheiro no Peru (o ceviche do restaurante em que ele trabalhava ganhou o segundo lugar em um concurso na cidade de Lima), foi motorista de ônibus no norte do Chile (disse que teve uma experiência mística a 5000 m de altitude, quando fazia o trajeto entre San Paedro do Atacama e Salta) e por fim vendedor de choripan na Argentina…

Tobias aceitou as desculpas, com a condição que seu irmão revelasse o verdadeiro motivo da fuga…

Então Teodorico revelou: Você se lembra da Noêmia??? A nossa professora de primeira comunhão… pois bem, ela dizia que no dia do juízo final iria passar um filme com a vida de cada um, e todos iriam assistir a vida de todos… então eu fiquei pensando que quando passasse o filme da minha vida, não poderia ter gente dormindo… imagine que vergonha, na hora que estão passando o filme com a sua vida você olha para o lado e vê uma fileira de gente dormindo… não, não dá… então eu resolvi fugir…

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brahol

O DESTINO É O DESTINO

Naquele verão de 2018 um único assunto dominava as conversas nos bares: acorreção de uma terrível injustiça, simplesmente o maior escândalo do futebol de todos os tempos: a partida realizada em trinta anos antes em que a Argentina goleara o Peru por seis a zero na Copa de 1978 fora considera inválida… Isto mesmo, quarenta anos depois foram encontradas provas contundentes de que aquilo fora uma enome armação… o time platino precisava de uma vitória com no mínimo quatro gols de diferença para ir à final do mundial e a seleção peruana era um osso duro de roer…
Porém o vestiário do escrete peruano foi visitado por ninguém mais, ninguém menos do que o ditador argentino Rafael Videla e Henry Kissinger e a seleção platina venceu por seis a zero em uma dos jogos mais esquisitos da história das copas do mundo…
Agora tudo estava esclarecido…depois de encontradas as provas, a FIFA determinou que o Brasil (que fora prejudicado com a terrível armação) jogasse com a Holanda para a definição do campeão da Copa de 1978, quarenta anos depois…o mais absurdo foi que a entidade futebolística exigiu que a partida fosse disputada com os mesmos jogadores daquele torneio, (ou seja seria uma partida de veteranos que iria definir mais uma seleção campeã do mundo), obrigou as seleções a jogar com o mesmo fornecedor de material esportivo daquela copa(para a revolta do fornecedor atual) e por fim, os direitos de transmissão foram dados somente para as emissoras que transmitiram a copa de 1978 …
Josias Guilherme deveria se animar com a notícia, pois quando assistira este torneio aos quatorze anos de idade ficara revoltado com o acontecido…finalmente teria a chance de ver aquela terrível injustiça ser reparada… porém a vida do nosso protagonista se encontrava em um terrível dilema: por pura covardia desistira de uma carreira incerta de artista plástico e optara pelo funcionalismo público, uma ilha de relativo conforto em meio a um oceano de mediocridade… ou seja, ele não se tornara o artista que sonhara ser aos quatorze anos de idade…
Seria sua falta de coragem para assumir o posto de um dos pintores mais consagrados do planeta, fruto da decepção com aquela partida??? Com aquela armação??? Se até a copa do mundo é arranjada, por que é que alguém vai lutar para cumprir a sua missão, se tudo está previamente determinado???
Talvez… talvez aquele jogo tivesse atrapalhado tudo… talvez ele devesse se resignar a viver assim até a aposentadoria… e não era que ele estava resignado???
Porém, na manhã do dia do jogo nosso protagonista viu uma esfera no céu… e a esfera explodiu!!! de dentro dela saiu uma esfera menor, e esta esfera menor explodiu também!!! e surgiu uma esfera menor ainda… e sucessivamente foram explodindo e surgindo esferas… até que a sétima esfera fez uma espécie de rodopio e sumiu no ar… a partir daí ele compreendeu que tudo mudaria em sua vida… o fato é que a justiça foi feita: o Brasil foi heptacampeão Mundial de Futebol e Josias Guilherme pode enfim iniciar a sua caminhada para a glória…

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O CANTOR SOLUÇANTE

Primeira Parte

Gustavito Ramirez era o que se costuma chamar de sujeito esquisito, depois de uma infância tranquila na cidade de Santiago Suchilquitongo (no estado de Oaxaca,México), sua família se mudou para o interior de Goiás, mais precisamente para Goianira, após passar a adolescência nesta cidade, ouvindo no rádio os sucessos da Jovem Guarda, o nosso protagonista rumou para Villa Luzuriaga na Grande Buenos Aires, onde exerceu o ofício de marceneiro enquanto sonhava em se tornar um lutador de boxe, imaginando seu nome estampado nos letreiros do Luna Park para a grande luta valendo o cinturão mundial dos médio-ligeiros… mas após ingressar para um grupo político radical, Gustavito foi perseguido pelo regime militar, tendo que exilar em Cork, na Irlanda onde trabalhou como estivador… após juntar algum dinheiro ele arrendou um Pub… nesta altura do campeonato o nosso amigo já havia esquecido de tentar a sorte nos ringues e decidiu se dedicar a música, sendo que após aprender violão, passou a se apresentar no seu Pub, já batizado de “Youth Guard´s Little Corner” com um repertório das canções que aprendera no Brasil misturado com os boleros mexicanos (que sua mãe costumava cantar) e também alguns tangos… sua peculiaridade como cantor era que Gustavito Ramirez desenvolveu uma técnica de marcar o compasso das música com soluços…

Segunda Parte

Passados muitos anos ele não aguentava mais o cheiro de Kidney Pie, se desfez do Pub e resolveu montar uma pousada no interior do Brasil, mas ao invés de Goiás ele preferiu se instalar no sul de Minas Gerais, em uma cidadezinha chamada Bueno Brandão… No entanto Gustavito não era feliz pois ainda não havia conhecido sua cara metade… Um dia ao nascer do sol enquanto plantava algumas mudas de lavanda no jardim da pousada ouviu um sapateado flamenco vindo de uma das habitações… percebeu então que a dançarina marcava o compasso com tosses ritmadas… ficou muito curioso para conhecer a hóspede, pois na noite anterior havia ido até Ouro Fino comprar alguns equipamentos e deixara sua funcionária Jacira encarregada de recepcionar os turistas… Jacira, quem é que está no quarto 7??? É uma moça que chegou ontem, é muito bonita, dotô…parece até artista de novela… Gustavito ficou ainda mais curioso… mais tarde quando tirava do forno um pão de gema oaxaquenho (receita que lhe fora ensinada pela avó) viu a beldade se aproximar… – Nossa este pão está cheirando bem!!! Me desculpe a intromissão, mas era você que estava dançando flamenco ao nascer do sol, senhorita??? Sim, mas estava apenas taconeando, isto é, dando uns passinhos, se estivesse dançando mesmo iria fazer muito barulho… Onde você aprendeu a dançar??? Em Guaja de Faragüilt, na Andaluzia… Hablas español? Si, como no! A conversa se estendeu durante horas e horas… a nossa protagonista contou que se chamava Mercedes Gonzales Carbajal e que saiu da Andaluzia na adolescência, rumando para Akçaabat no litoral da Turquia (junto o mar Negro), no entanto não conseguiu se adaptar e depois de uma complicadíssima estória (que não pode ser contada aqui, uma vez que é muito extensa) foi parar em Fray Bentos na República Oriental do Uruguai, lá foi proprietária de um restaurante que servia tanto especialidades andaluzas como também delícias da culinária turca (com destaque para o Ayva Yahnisi, um cordeiro ensopado com marmelo de dar água na boca). Cansada daquele país onde tudo acontece muito devagar, Mercedes resolveu vir para São Paulo onde abriu uma nova casa, agora incorporando a culinária uruguaia também… Num dado momento da conversa ele disse: Ahora hablemos en português!!! Nós somos muito esquisitos, muito exóticos, não somos verossímeis… o leitor provavelmente pensará que este conto não engrena… Borges diz que os leitores devem acreditar que os personagens vivem além do que o autor escreve sobre eles, por exemplo, nos momentos que os leitores não veem determinada personagem estes devem imaginar que a personagem dorme, sonha e exerce outras funções, caso contrário a personagem se torna irreal!!! Nossas vidas são muito malucas… nós definitivamente não somos reais… na verdade isto não passa de uma grande palhaçada…. Não, não é bem assim – respondeu ela – vamos ler a primeira parte do conto… Depois da lerem a primeira parte deste conto ela pediu um café e continuou com o seu argumento: Se não somos reais, ninguém é real uma vez que, parafraseando o mesmo Borges, tanto nós quanto o leitor leram a primeira parte de conto, o que nos torna iguais, de modo que se para o leitor nós somos fictícios, para nós quem é fictício é o leitor, então todos nós somos irreais… Mas nós somos reais… replicou ele dando um leve beliscão no braço dela – Não dói??? – Dói… – Então qual a sua verdadeira identidade??? – É Jussara Mainara, e a sua??? – É Ubiratã Ubirajara… – Nossa, até rima… – Quem sabe não seja… – Uma solução…

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A VERDADEIRA ESTÓRIA DE JOSUÉ JAMIL

Na primeira vez que Josué Jamil viu um retrato de James Joyce, percebeu que os comentários eram reais… quais comentários??? os comentários que asseguravam que ele era um sósia perfeito do escritor irlandês… isto fez com ele, um reles escriturário, se interessasse pela obra de um renomado escritor e também passasse a se vestir como tal… gostou de tudo que leu (até de Finnegans Wake., por incrível que pareça…), mas para ele a melhor obra de Joyce era “Ulisses”, romance que se passa em apenas um dia no qual há um paralelo entre a estória narrada (no caso o cotidiano de um corretor de anúncios chamado Leopold Bloom) e a epopéia de Homero, significando que um simples dia no nosso cotidiano pode ser tão intenso ou significativo quanto uma epopéia…

Mas por mais que Josué Jamil tivesse gostado de “Ulisses” ele achava que estava faltando algo… o que??? ele não sabia o que era, mas sabia que estava faltando alguma coisa e achou que se passasse a ler os outros grandes autores ele iria descobrir… então ele começou a ler… a ler vários autores…. quais autores ??? Machado, Melville, Goethe, Homero, Shakespeare, Dante, Cervantes, Blake, Borges, Baudelaire, Poe, Pessoa, Eliot, e vários outros, mas ao ler Camões é que Josué Jamil teve o estalo… qual estalo ??? simplesmente ele percebeu que “Os Lusíadas” era a primeira epopéia moderna, e que o grande erro de “Ulisses” era o fato de Joyce ter não usado a obra de Camões como base para seu livro revolucionário, mas utilizado “A Odisséia”, ou seja, utilizado uma epopéia antiga como fundo para uma estória que ocorre em 16/06/1904… o melhor, seria se Joyce tivesse se baseado em uma epopéia moderna, no caso “Os Lusíadas”…

“- Já sei !!!” pensou… “Vou escrever um livro baseado na epopéia de Camões!!!”

Da mesma forma que James Joyce entitulou seu livro com o nome do herói (“Ulisses)” de uma epopéia (“Odisséia”), Josué Jamil pensou em intitular seu livro com o nome do herói de “Os Lusíadas”, no caso: “Vasco da Gama”…

Mas havia um problema…qual problema??? Josué Jamil era são-paulino doente, (se vestia sempre com uma gravata no padrão da camisa do clube e usava exageradamente um anel com o distintivo do clube), sendo que não tinha boas recordações da final do campeonato brasileiro de 1989 (em que o tricolor paulista perdeu para a equipe cruz-maltina), de modo que a nova obra, a que iria revolucionar definitivamente a literatura, jamais poderia se chamar “Vasco da Gama”… “- Depois eu coloco o título.” pensou o nosso protagonista, na verdade ele ainda não sabia nem sobre o que escrever… pensou, pensou e pensou… e descobriu… descobriu o que??? descobriu que deveria escrever um romance autobiográfico e que o evento mais significativo para ele havia sido a final do mundial interclubes de 1992 … logo o romance deveria se passar somente em um dia, mais precisamente na data do jogo entre São Paulo X Barcelona em 12/12/1992… um pouco de tempo depois o nosso protagonista descobriu algumas outras analogias… quais analogias??? analogias complexas demais para serem explicadas detalhadamente neste breve relato, mas analogias entre “Os Lusíadas” e o jogo de futebol retro-mencionado…

O Lusíadas estão dividos em quatro partes: proposição (Canto I: 1-3), invocação (Canto I: 4-5), dedicatória (Canto I: 6-18) e narração (Canto I: 19 até o final :144), sendo que a entrada dos times em campo seria uma analogia da “proposição”, os times cantando o hino seriam uma analogia da “invocação”, a partida seria uma analogia da “narrativa” e os vencedores recebendo os troféus seriam uma analogia da “dedicatória”… Se analisarmos atentamente a partida veremos como ela se assemelha a narrativa… o gol do búlgaro Stoitchkov aos 12 minutos seria uma analogia da emboscada que os mouros moçambicanos armaram contra os portugueses no final do Canto I, o gol de empate de Raí após a bela jogada de Muller aso aos 27 minutos do primeiro tempo seria uma analogia da chegada de Vasco da Gama a Calicute no início do Canto VII, e o gol da vitória na perfeita cobrança de Raí seria uma analogia do episódio no Canto X em que Vasco da Gama contempla a Máquina do Mundo…

Logo o romance de Josué Jamil estava estruturado…mas como é que estava estruturado??? seria uma narrativa da primeira vez que um jovem de Jundiaí iria a região da 25 da de Março no centro de São Paulo, lá ele compraria incensos e outros artigos indianos para a sua namorada, depois se dirigiria para o Mercadão onde compraria um litro de azeite português (para sua mãe) e uma garrafa de um licor de ervas catalão (para o seu pai), no retorno a sua cidade natal se encontraria com um amigo na rodoviária local onde assistiriam a final do Mundial de Interclubes na TV de um boteco próximo… e ao chegar em casa encontraria sua namorada dormindo , vestida com um pijama em que a palavra SIM estaria estampada no peito… cada episódio da narrativa teria uma contrapartida nos “Os Lusíadas”, e também uma outra contrapartida na referida partida de futebol, havendo inclusive 23 personagens correspondentes aos 23 jogadores que disputaram a peleja… a questão que faltava era o nome do livro… e sabem qual o nome escolhido??? a obra iria se chamar “Raigama” … e o que significava esta palavra??? era um neologismo que misturava o nome do capitão do escrete tricolor com o sobrenome do navegador português…

Depois de sete anos, o livro ficou pronto, onde a estória ocupava um pouco mais de cem páginas, enquanto que o apêndice explicando detalhadamente as analogias retro-mencionadas possuia cerca de quatrocentas páginas… Josué Jamil levou os originais do livro a diversos editores, que sempre recusavam a publicação desta obra complicada… até que conseguiu publicá-la… mas conseguiu como??? ora, depois de tentar em vários locais ele procurou Louis Monterrey, o rei do Marketing Editorial… Louis após ouvir a sinopse da obra e folheá-la por alguns minutos, disse o seguinte:

“- Meu amigo, esqueça esta idéia de querer fazer um “Ulisses” melhorado, um livro não pode ser aperfeiçoado, uma obra-prima então, nem pensar… um livro não é como um automóvel que é aperfeiçoado ano após ano… um livro é um livro, apenas… faça o seguinte: jogue fora este chapéu e esta bengala ridícula, você é o Josué Jamil e não o James Joyce!!! em seguida raspe a cabeça e passe a se vestir com uma túnica branca… então aí poderemos publicar o livro, mas terei que fazer duas modificações…”

“ – Mas você não pode mexer no texto,!!! Isto eu não permito!!!” respondeu o nosso protagonista…

“ – Mas quem disse que eu vou mexer no texto??? nada disso… só vamos substituir este enorme apêndice explicativo por um prefácio adequado e mudar a ortografia do título… só isto!!!”

O que dizia o prefácio??? dizia que aquela estória era universal pois se tratava da analogia de uma iniciação espiritual (por isso que o título era indiano, apesar da estória se passar no centro de São Paulo e em Jundiaí) e que todo cidadão que a lesse se tornaria uma pessoa diferente porque esta estória poderia acontecer com qualquer um de nós…

Hoje Josué Jamil é um escritor realizado… seu livro de estréia “Rayghama” com um belo prefácio de Luigi Montessori (um dos pseudônimos de Louis Monterrey), foi o primeiro de uma série de obras de enorme sucesso editorial (todas com nomes indianos, ou melhor, pseudo-indianos)… ele parou de comer carne e de beber (pelo menos em público, é claro) e com a cabeça raspada, a túnica branca a as sandálias de couro, aparenta ser um autêntico mestre espiritual… a única coisa que destoa em seu visual é o inseparável anel com o distintivo de clube de futebol…

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Eis aqui o conto publicado na TUDA:

O GUITARRISTA E O DICIONÁRIO

Hilário Hidelbrando entrou naquele bar decadente, escolheu uma mesa, pediu uma cerveja e uma porção de filé-aperitivo acebolado. Naquela época (início da década de noventa) não havia aquela mania malcheirosa da picanha no recháud… Nunca havia ido lá… ficou reparando na freguesia: na mesa da direita um bando de jovens sem educação… na mesa da esquerda uma morena exuberante lendo um livro silenciosamente… ficou achando que aquela molecada iria aborrecê-lo, afinal ele havia ido àquele lugar pois ouviu dizer que o lendário guitarrista Lanny Gordin iria se apresentar … Hilário Hidelbrando sempre quis vê-lo tocar, porém esse músico que fora fundamental na fase pós-tropicália, havia se afastado do cenário musical (não se esqueçam que este miniconto se passa no período retromencionado). O nosso protagonista era obsecado por três coisas: pela guitarra de Lanny Gordin, pela língua falada pelos bandeirantes, a hoje extinta Língua Geral Paulista, também conhecida como Tupi Austral, uma derivação do tupiniquim falado pelos índios de São Vicente e da região do alto do Tietê… Para Hilário Hidelbrando, assistir um show do Lanny Gordin seria como folhear o único dicionário da Língua Geral Paulista escrito até hoje: o raríssimo “Glossaria Linguaram Brasiliensium” escrito por autor desconhecido no século XVIII e publicado por um alemão chamado Von Martius em 1863… mas isto sim, era praticamente impossível pois segundo consta o único exemplar se encontrava em uma biblioteca holandesa. A terceira obsessão dele era encontrar um par perfeito… “Uma mulher como a da mesa em frente” pensou… Um pouco antes dele pedir a segunda cerveja o show começou… Era o Lanny mesmo, em carne e osso… como o repertório do grupo que se apresentava na casa era samba, o ilustre guitarrista não solava , mas fazia o acompanhamento (guitarra base) com maestria: uma sucessão de blocos de acordes que demonstravam um formidável domínio harmônico naquele estilo em que outros guitarristas também brilharam (Barney Kessel, Larry Coryell, Hélio Delmiro, etc). No momento do intervalo dos músicos um dos integrantes da mesa barulhenta pediu a guitarra emprestada e fez um daqueles solos de rock bem previsíveis cheios de clichês e riffs manjados… a namorada achava o máximo os amigos aplaudiam entusiasmados… Quando o grupo voltou para a segunda parte do espetáculo, o guitarrista veio até a mesona e falou: – Vocês gostam de rock??? Então aumentou o volume da guitarra e começou fazer um solo cheio de distorsões em que a linha melódica seguia nos caminhos mais variados, naquele estilo em que somente um certo guitarrista brilhou…

O pessoal da mesa grande ficou mudo… então no meio daquele solo de guitarra maluco tocado a todo volume, ele olhou para ela e reparou que a morena exuberante o observava…

Quando a situação se normalizou ela se levantou foi até a mesa dele falou: -“Sei que você está incomodado com a mesa vizinha, mas também ninguém merece ficar ao lado deste povo barulhento, se você quiser pode sentar na minha mesa, meu nome é Núbia Nanira…”

– “Belo nome … o meu é Hilário Hidelbrando.”

Ele se levantou e foi sentar com ela… “Reparei que você está gostando desse livro…” disse ele – “Que livro é???” – “É um dicionário que veu avô me deu… é sobre a língua falada pelos paulistas no início da colonização… Você sabia que os bandeirantes não falavam português???”

“Sim ,eu sei… existiam duas línguas gerais: a Língua Geral Paulista, falada pelo pessoal de São Paulo, Minas e Goiás e a Língua Geral Amazônica, ou nheengatú, falada pelos habitantes do Maranhão e Pará… o português era falado só no trecho entre o Rio de Janeiro e Piauí…deve ser por isto que São Paulo tem muito mais topônimos indígenas do que o Rio…pouca gente sabe que, por exemplo, que por mais de um século, (mais precisamente entre meados do século XVII e o final do século XVIII), os paulistas e cariocas não falavam literalmente a mesma língua… mas mudando de assunto, deixe-me ver o livro, pois que eu saiba só existe um dicionário da Língua Geral Paulista, que se chama “Glossaria Linguaram Brasiliensium” e há somente um único exemplar que está guardado em um museu da europa…”

Desculpe, mas você está enganado …meu avô, quando lecionava na Faculdade de Letras de Assis, vasculhava as bibliotecas públicas do interior de São Paulo e descobriu um segundo exemplar na Biblioteca Municipal de Trabijú… Neste instante ela fechou o livro (que permanecia aberto sobre a mesa) e ele pode ler na capa: “Glossaria Linguaram Brasiliensium”!!!

Eu não acredito!!! Eu tenho duas obsessões: ouvir um show daquele guitarrista ali da frente e ler este livro magnífico…

Na verdade não haviam duas, mas três obsessões, e a terceira estava diante dele, Ele então resolveu pedir outra cerveja, coincidentemente a terceira… A conversa engrenou…

Hilário Hidelbrando querendo impressionar Núbia Nanira, disse o nome do bairro dele traduzido do tupi para o português: -“Eu moro no bairro da árvore velha” – “Há! No Ibirapuera…“ respondeu ela prontamente…

O nosso protagonista ainda impressionado com o fato da nossa protagonista saber tupi, emendou: – “E você onde mora???”

– “No bairro dos gafanhotos verdes”

– “Não conheço muito o Tucuruvi, é legal???”

– “Sim… se quiser conhecer eu te mostro”… disse ela entregando em seguida o telefone escrito (com a caneta emprestada pelo garçon) em um guardanapo de papel.

Hoje Hilário Hidelbrando e Núbia Nanira estão felizes… se casaram, tiveram um filho e semana que vem vão batizar a criança… só não sabem ainda em que língua será escrito o convite… afinal “batizado de criança” é “moiasúk pitánga” em tupiniquim , “seróka mitangá” na língua geral paulista ou “serok taína” em nheengatú….

Observação: Toda esta estória é pura ficção, a inserção de pessoas reais mescladas a personagens fictícios é mero recurso literário, por sinal já utilizado por grandes escritores.

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Em homenagem aos 200 anos do nascimento de Egar Allan Poe, resolvi republicar a postagem do dia 18/08/2002, em que em um dos meus mini-contos, cito as várias traduções do poema “O Corvo” (vejam os links na cor violeta):

UMA MULHER CHAMADA LEONORA

Naquela escaldantemente calorenta manhã de dezembro , Jacinto Pirilo acordou sobressaltado : bebera uma jarra de manhatan e não se lembrara de nada do que conversara com Leonora Dora León , sua nova namoradinha . A mania de beber coquetéis em jarras ( ao invés do diversos copos e taças propícios para tal fim ) era talvez uma forma de resgatar a sensação de infância de tomar jarras de limonadas e laranjadas … Aliás desde que tivera uma visão transcendental ao rodar um antigo pião , nosso protagonista passou a ter obsessão por tudo que recordasse os seus tempos de criança …
O telefone chorou e chorou novamente … Era ela … marcaram um encontro para as seis da tarde na Ladeira da Memória … Por que lá ? Vai saber …
Depois de ter tomado seu chá com rodelas de limão siciliano , Jacinto Pirillo passou a escrever um artigo sobre as traduções do poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe , no qual primeiramente discorria sobre a beleza da original … gostava partircularmente do início da segunda estrofe : “Ah , distinctly I remember it was the bleak December, / And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor” . Comparava depois , os diversos tradutores em lingua portuguesa do famoso poema : Machado de Assis , Emílio de Meneses , Fernando Pessoa , Godin da Fonseca , Benedito Lopes , Alexei Bueno , etc , para chegar a conclusão que a melhor versão foi a de um jornalista de Belo Horizonte chamado Milton Amado …o iníco de sétima estrofe era uma preciosidade : “Abro a janela e eis que , em tumulto , a esvoaçar , penetra um vulto / – é um Corvo hierático e soberbo , egresso de eras ancestrais .”
Findo o artigo , ele reparou que a primeira palavra do poema era Once ( de : Once upon a midnight dreary ) a mesma usada para denominar o bairro portenho de onde viera sua namorada : o bairro Once , a região de Buenos Aires situada entre os bairros de Retiro e Palemo … A estranha coincidência deixou-o sobressaltado …
Almoçou fartamente e depois dormiu . A tarde se dirigiu para o Centro … Ao chegar sob o crepúsculo tropical no local combinado , viu Leonora Dora Léon se aproximar … do meio da enorme população de pombos que infestam a região central de São Paulo , surgiu um corvo que sobrevoou o ombro direito da beldade platina … ela trazia um CD do grupo de jovem guarda “The Ravens” que tinha uma versão em inglês da musica “Nunca Mais” ( Evaldo Braga / Cézão ) .

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