PALPITE INFELIZ
“Quem é você que não sabe o que diz ?
Meu Deus do céu , que palpite infeliz !”
( Noel Rosa )
Sábado retrasado ( sete de Dezembro ) o famoso poeta Ferreira Gullar em entrevista a um jornal paulistano declarou :
“(…) Costumo dizer que coisas meramente cerebrais são meio satânicas . ‘Ulisses’ de James Joyce , é ume delas . Demônio não tem afeto . É só cérebro . A arte não , tem alguma coisa de anjo . Você faz uma obra tim , tom ( imitando sons ) e diz que é arte . É nada . Há quem chame de gênio o John Cage e aquela coisa toda de música feita de silêncio . Que gênio que nada . Vá tomar banho .”( Ferreira Gullar )
O meu espanto inicial foi com o ato de demonizar uma obra , um artista ou mesmo um estilo . Parece que esta atitude , antes restrita aos moralistas puritanos , espalha-se para os grupos “liberais” , vemos pessoas do nosso convívio dizer bobagens como “este sujeito é do mal” , “galera do mal” , etc , o que induz a pensar que a pessoa que pronunciou estas belas expressões fosse “do bem” . Será que Ferreira Gullar não está ( por vias opostas , é claro ) se aproximando daqueles idiotas que proibiram e queimaram exemplares do “Ulisses” nos anos vinte ??? Será que ao preconizar uma arte angelical ( mais pura ) ele não está se aproximando dos ideais stalinistas que reprimiram o concretismo soviético ( uma arte cerebral “que o povo não entende” ) “obrigando” sujeitos como Malevitch a pintar cenas bucólicas . E por falar em quadros com pastores , temos de lembrar que um de seus mais famosos admiradores era um senhor de bigode curtinho, que expunha a arte moderna como coisa de degenerados, em contraste com a nobre e careta arte ariana . Sai : Cidadão Kane , entra : Baby o porquinho !!!
O meu segundo espanto , foi a covardia de Ferreira Gullar , pois se acha James Joyce & John Cage demoníacos , o que ele pensará dos irmãos Campos , Pignatari & outros concretos ??? O que dirá de Smeak , Rogério Duprat & Walter Franco ??? Por que só falar mal de extrangeiros que não estão entre nós ??? Se ele acredita mesmo em seus ideais porque é que não dá nome aos bois ???
Voltando a “Ulisses” , acho que é um livro com intensos momentos de poesia , vejam por exemplo este trecho no qual o filho de Paddy Dignam ( cujo enterro se desenrola de manhã , no início da segunda parte ) vai à tarde , trajando luto , comprar carne de porco para sua família , e pára diante de uma vitrine , para apreciar um cartaz de uma luta de boxe . Vejam como Joyce descreve os reflexos do personagem no espelho da vitrine e o paralelos entre os dois reflexos ( o do espelho da direita e o do espelho da esquerda ) com os lutadores do cartaz :
“Em frente do ruggy O’Donohoe o senhorzinho Patrick Aloysius Dignan , carregando a libra e meia de porco do Mangan, antes falecido Fehrenbach, a que tinha sido mandado, ia zanzando ao longo da quente Rua Wicklow. (…)
Depois da alameda Wicklow a vitrina de Madame Doyle, modista chapeleira da corte, o atraiu. Ele ficou olhando para os dois lutadores nus até os baixos e mostrando seus punhetaços. Dos espelhos laterais dois enlutados senhorezinhos Dignams embasbacavam-se silenciosos. Myler Keogh, o galo favorito de Dublin, enfrentará o sargento-mor Bennet, o pugilista de Portobello, por uma bolsa de cinquenta soberanos, meu Deus, essa é que deva e ser uma boa luta de murros para a gente ver. Myler Keogh, esse é o sujeito que está atacando contra o de cintura verde. Dois bagarotes a entada, soldados meia-entrada. Era sopa fazer uma tapeação com mamãe. O senhorzinho Dignam da esquerda virou-se no que ele se virou. Esse sou eu de luto. Quando é que vai ser? Vinte e dois de Maio. Ora, a droga da coisa já passou. Ele virou-se para a direita e à sua direita o senhorzinho Dignam virou-se, o boné de banda, o colarinho espentado para cima. Ao abotoá-lo para baixo, o queixo levantado, viu a imagem de Marie Kendall. A encantadora soubrette, ao lado dos lutadores.(…)” ( James Joyce – Tradução Antônio Houaiss )
Talvez o único defeito de “Ulisses” é não ter referências a Lisboa , afinal o nome da capital lusitana deriva de Ulissopona , que significa “Porto de Ulisses” . Mas Joyce infelizmente nunca aprendeu português … ou então teríamos Molly Bloom se empanturrando de pastéis de Belém …
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