METAMORFOSES – Ovídio – Editora 34 – Tradução: Domingos Lucas Dias
Este livro, em quase doze mil versos, descreve desde a origem do universo até a época em que foi escrito, 8 D.C., quando Roma era governada por Augusto, passando tanto por mais de duzentos e cinquenta mitos gregos, quanto por relatos como a Ilíada & Odisséia (Homero) ou pela Eneida (Virgílio).
Confesso que deveria ter lido este livro antes, e me arrependo de não tê-lo feito… meu conhecimento sobre a arte teria sido profundamente enriquecido: por exemplo, conhecendo o mito de Dânae (*), eu teria apreciado melhor tanto o quadro de Ticiano exposto no Museu do Prado, quanto a obra com o mesmo tema pintada por Gustav Klimt.
Mas não só os pintores beberam nesta fonte, escultores com Bernini (Apolo e Dafne), músicos como Wagner (a ópera Lohengrin foi inspirada no episódio de Sêmele), além de escritores com Shakespeare, Dante Alighieri, Goethe, James Joyce, Erza Pond e Kafka foram inspirados por Metamorfoses, aliás o último batizou sua melhor obra com o mesmo título deste livro de Ovídio, só que no singular.
Mas na minha opinião, a arte que mais deve a Olvídio é o cinema: há dois milênios atrás ele já escrevia em termos de montagem cinematográfica e seus versos estão repletos de efeitos especiais: seres humanos se metamorfoseiam em animais, minerais, fontes, rios ou astros celestes… as pedras lançadas para trás por Deucalião e Pirra se transformam em seres humanos, aliás nossos antepassados, segundo esta mitologia…
Duas coisas se destacam em Ovídio: a primeira é a capacidade de amarrar todas as estórias tão diversas em um único relato… é claro que às vezes ele acrescenta um tema intermediário para juntar dois relatos diversos, mas faz parte… a segunda é a poesia de Ovídio, que ao contrário de tantos poetas antigos que se tornaram datados, ainda permanence atual.
Vejam este fragmento do livro III, onde o marinheiro Acetes conta ao rei Penteu a fábula do jovem Baco que embriagado é descoberto por marinheiros tirrenos que oferecem uma carona ao mesmo, pretendendo na verdade vendê-lo como escravo… porém no barco, Baco desperta e descobrindo o plano transforma o cordame do navio em uma videira e faz surgir temíveis felinos… os marinheiros apavorados se atiram no mar se transformando em peixes, só restando Acetes, o único marinheiro que se opusera ao pérfido plano:
”Então o deus, zombando deles como se apenas agora, por fim, se apercebesse da traição, olha o mar da curva da popa, e, simulando chorar, diz: ´Marinheiros, não é esta costa que me prometestes! Esta não é a terra que vos pedi! Por que razão mereci um castigo? Que glória é a vossa se enganardes, sendo adultos, uma criança e, sendo muitos, a um sozinho?` Eu já estava a chorar. O ímpio grupo ri-se de minhas lágrimas e bate pressurosamente o mar com os remos. (…) A embarcação deteve-se em alto mar como se estivesse em doca seca. Atônitos, eles persistem em bater os remos, soltam as velas e tentam avançar com recurso a ambos os meios. As heras travam os remos e, com seus retorcidos nós, introduzem furtivamente por todos o lado e matizam as velas com seus pesados cachos. O próprio deus, de fronte cingida de cachos e uvas, brande uma lança coberta de parras. Em seu redor estão deitadas ilusórias imagens de tigres, de linces, e de panteras de corpos ferozes e mosqueados. Os marinheiros saltaram borda fora, fosse a loucura, fosse o medo a impeli-los. E Medom foi o primeiro a quem todo o corpo começou a ficar negro e a curva da coluna a acetuar-se. Lícabas começou a dizer-lhe: Em que estranha coisa está a transformar-te?` E, enquanto fala, alarga-se-lhe a boca, curva-se-lhe o nariz, e a pele se escurece e cobre-se de escamas. Ao pretender puxar em sentido contrário os remos, que resistiam, Líbis vê as mãos encolherem para um tamanho reduzido e a deixarem de ser mãos, podendo considerer-se barbatanas. Um outro, ao pretender erguer os braços para o cordame enredado, já não tinha braços e, arqueando o corpo mutilado, deslizou para a água; a extremidade da cauda tem forma de foice no modo como se curvam os cornos da meia lua. Saltam por todo o lado e levantam uma nuvem de orvalho. Emergem de novo e voltam a submergir no mar. Executam uma espécie de dança, elevando no ar seus corpos folgazões. Aspiram e expelem a água do mar pelas largas narinas. Dos vinte que éramos, pois tantos levava aquele barco, restava só eu.”
Esta bela edição da Editira 34 é bilíngue: latim e português… mesmo não sabendo latim, tentei ler no original só de farra… confesso que não deu… dos quinze livros só li em latim os dois primeiros…
Além do texto na língua original, a edição tem também um glossário, que é muito útil, pois Ovídio costuma tanto se referir a um deus ora na forma grega, ora na forma romana, quanto não revelar diretamente o nome do personagem preferindo dizer: o filho de fulana ou o neto de sicrano… então, as pessoas que não estão familiarizadas com a correspondência dos nomes dos deuses (o Zeus grego é o mesmo que o Júpiter romano) nem com a árvore geneaógica destes deuses, precisam recorrer a este glossário. Como sugestão para a próxima edição, uma árvore geneaógica ilustrada das divindades greco-romanas seria muito didática.
Então… o que você está esperando, caro leitor?
(*) Encerrada por Acrísio, rei de Argos em uma torre de bronze (pois ele ouvira a profecia de que seria assassinado pelo seu neto), Dânae foi fecundade por Zeus através de uma chuva de ouro gerando Perseu.
Post a Comment