A ERUDITA DESCONHECIDA
I
Na décima primeira hora daquela sábado Silvestre Silva acordara pensando em um trecho de uma canção que sonhara , mas da qual não conseguira lembrar o título , nem o autor : “Numa tarde tão linda de sol / ela me apareceu /Com um sorriso tão triste / um olhar tão profundo , já sofreu /Suas mãos tão pequenas e frias / sua voz tropeçava também / me falava da infância de lágrimas / nunca teve ninguém …” (*)
Na completa impossiblidade de obter algum indício do canção que latejava em seus pensamentos , nosso protagonista resolveu beber cerveja e degustar uma feijoada que tivesse lingua , orelha-de porco , rabo , etc ( uma vez que tal prato , preparado desta maneira , possui uma consistência aveludada que as versões light jamais apresentam ) .
Tendo realizado seu objetivo ( em um bar de esquina dessas ruas com nomes indígenas do bairro de Moema ) , Silvestre resolveu escrever um poema enquanto bebericava um bitter digestivo . Ao avistar duas loiras na mesa da frente , lembrou-se que havia sonhado também com uma formosa criatura de cabelos de ouro , e intuindo que uma delas poderia ser sua companheira onírica , solicitou ao garçon que entregasse a ela a poesia ( acrescentada de seu telefone e endereços real e virtual ) sete minutos após se retirar … em seguida pediu a conta …
A boçal moçoila loira derramou cerveja propositalmente na recente criação literária e já ia amassá-la quando sua platinada amiga advertiu-a que o autor poderia estar observando . A mocinha sem bossa , guardou o papel na bolsa de grife …
II
Tamires Janete voltava a pé e sozinha de uma sessão gratuita de um cineclube que exibira um clássico do neo-realismo italiano e aborrecida choramingava de cansaço , pois tivera que sentar-se no chão , uma vez que um par de casais alegrinhos furou a fila e ocupou os lugares restantes … Ao notar uma bolinha de papel ser arremessada de um carro de luxo , nossa protagonista pensou em principiar um escândalo , mas já era tarde … o automóvel , ocupado por duas loiras , arrancou covardemente . Tamires que era órfã e se educou a muito custo , notando a falta de cidadania destas criaturas , lamentou o fato de possuir a cabelos da mesma cor das duas coisinhas – “É por causa desta gente que sou camada de burra !!! Vou ver que tipo de bobagem elas estavam lendo …” Ao desdobrar o papel notou que continha uma poesia de um tal de Mário da Silva Brito e embaixo um endereço e telefone de um tal de Silvestre Silva . Guardou o pergaminho amarrotado para ler outra hora . No dia seguinte surpreendeu-se pois achou que o poema estava diferente – “É estranho este poema de Mário de Sá Carneiro , vou anotar a estrofe final …Peraí , será que era mesmo este o autor ???” – pensou . Na segunda feira ela tirou a dúvida : era outra poesia e estava assinada por Mário Faustino , porém o nome e o endereço abaixo assinalados pemaneciam inalterados … Ela encheu-se de espanto nos dias seguintes ao notar que as poesias mudavam , mas não teve coragem para conhecer que era o tal de Silvestre Silva .
III
O nosso protagonista voltou ao mesmo bar na semana seguinte mas ao avistar a dupla de loiras acompanhadas de um tipo que usava corrente de ouro no pecoço e outro que parecia ser igualmente imbecil ; resolveu sentar-se afastado … Pediu um gin tônica e um pedaço de melão com presunto crú , quando uma outra loira , com um rosto de divindade felina e um corpo acetinadamente escultural perguntou se poderia se sentar -se, pois não havia mais outro lugar – “Sempre acontece isto comigo …sabe que outro dia no cinema tive que sentar no chão ?” disse sorrindo …
Porém Silvestre notou que seu sorriso era triste , seu olhar tão profundo … Quando notou que sua voz tropeçava também , teve a certeza que era a garota do sonho … “Sim era ela e não aqueles dois lixos em corpos de açougue …” – Pensou enquanto acenava pedindo uma bebida para a dama … então indagou – “Você gosta de literatura ?”
– “Gosto de tudo , veja este poema do Mário de Andrade !!!” respondeu a beldade desdobrando seu tesouro …
-“Nossa !!! O que é que meu nome e endereço estão fazendo aí ???” exclamou o nosso amigo .
-“Não sei eu achei este papel no chão …jogado fora de dentro de um carro , por umas mulheres parecidas com aquelas duas lá da outra mesa.”
– “Gozado , outro dia eu escrevi uma besteira qualquer e pus meu endereço embaixo e mandei o garçon entregar para elas…” confessou Silvestre envergonhado …
– “Deixa isto pra lá …me leve para outro lugar …” suplicou a formosa criatura enquanto acariciava o rosto dele com suas mãos tão pequenas e frias …
IV
Um engraxate encontrou uma bola de papel deixada sobre uma mesa de bar e atirou de brincadeira em seu amiguinho … Porém o petardo perdeu o rumo e foi parar na mesa das loiras . O sujeito com a corrente de ouro no pescoço desdobrou o papel e se surpreendeu ao ver estampada a figura de um burro . Agora não havia mais um endereço no papel , mas no endereço de Silvestre Silva havia um casal .
(*) O trecho citado pertence a canção “A Desconhecida” ( Fernando Mendes )
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